2.2.6 - A Resposta
“Acertasse eu com o que depois fiquei, para lá
de tantos assombros...”[i] diz o Narrador: “Um está sempre no
escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala”[ii].
Qual é a realidade com que Riobaldo se articula? É a realidade o alvo incognoscível
de um tiro no escuro? É aquilo
que está para lá de “tantos assombros?”. Filtra-se, e enfim dela nos chega por
indícios alguma indicação imprecisa, através da ética conturbada de paixão com
que nos dispusemos a vê-la? Ver é um grande milagre. E ver-nos tais quais somos
é o que produz a descoberta fundamental. Mas não é isso senão raramente
possível. “Um está sempre no escuro, só o último derradeiro é que clareiam a
sala”. Assim é que, no dizer de Bakhtin, a “sátira menipéia” toma a “fantasia
mais audaciosa e descomedida e a aventura..., pelo fim de criar situações
extraordinárias para provocar... uma verdade”[iii].
E sobre isto diremos mais algumas palavras a seguir.
Segundo o autor de Problemas da
poética de Dostoievski, é, a origem da formação da variedade
do romance que ele classifica de dialógica possui dois determinantes que são
dois gêneros do campo cômico-sério: O diálogo socrático e a sátira menipéia, o primeiro dos quais teve vida breve, mas que no processo de
sua desintegração provocou outros gêneros dialogais.
Esse gênero (a sátira menipéia) deve
sua denominação ao filósofo do século III a.C., Menipo de Gadare, cujas sátiras
não chegaram até nós. A “sátira menipeia”, entretanto, não é apenas um produto
da decomposição do “diálogo socrático”, mas as raízes de sua formação remontam
ao folclore carnavalesco.
As situações extraordinárias procuram a provocação, a experimentação
de uma visão, de uma verdade. materializada. E a fantasia serve à
busca, serve à provocação, a experimentação de um momento de verdade.
O fantástico assume o caráter de aventura, às
vezes simbólico... subordinado à função puramente ideológica de provocar e experimentar
a verdade[iv].
Na menipéia surge a modalidade específica
do zÇctn4ôks Neo expetLtnen~taZ: “O
real não está”, diz Riobaldo, “na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia”[v].
As fantasias, os sonhos e a loucura
“destroem a integridade épica e trágica do homem e do seu destino”[vi].
A quebra da norma, atingida pela “palavra inoportuna”, revela, por sua
franqueza cínica, ou pela profanação do sagrado, pela violação da entidade
ideológica que sustenta a arquitetura do bom-senso, a quebra da norma revela
que, por trás do fluxo cultural que nos mantém como cultura viva, pode-se
descortinar um princípio (verdadeiro) do Real, que ameaça ser o que sua
natureza aparenta: O insubstancial, o transitório, o vazio. Assim, o real
aponta para um escândalo: para o oco. Uma carnavalização. Cuja categoria predominante é a profanação.
A profanação é a demonstração de que o rei esta nu.
O questionamento do real, sua procura, sua
provocação, ainda que depois se descortine o insubstancial, o vazio — é o
processo da ambigüidade da norma, da profanação do sagrado e do saber (pelas
aventuras ao lugar do fantástico experimental) processo esse que é identificado
com a carnavalização mesma, cujo papel primordial é a paródia das leis do instituto
do sagrado, pelo ridículo que é quando deixa de apavorar.
O sagrado se institucionaliza mesmo pelo
caráter respeitável do discurso da ciência, tradicionalmente acatado como norma
e como meta. O Poder, expansivo e distribuitivo, é o poder do discurso do
sagrado, isto é, da vida da ciência, da vida do saber. Poder é saber. Qualquer
violação, qualquer procura, qualquer fantasia fica excluída de sua
possibilidade, fica no reino do inefável. E, “o que nos chamamos de inefável
não é outra coisa que o não verdadeiro, o irracional, o que simplesmente nós
imaginamos” disse Hegel, na Fenomenologia
do espírito[vii].
“Hoje em dia”, prossegue Riobaldo, “não me
queixo de nenhuma coisa”[viii],
isto é, no tempo da narração já o narrador está ausente daquele lugar do, fantástico
experimental, já está em casa, longe das aventuras e das situações
extraordinárias, já “não tiro sombra dos buracos”[ix],
já está na velha e nova arte, pois “os homens, quando estão a ouvir frases de
estilo, / Pensam que deve haver o que pensar naquilo”, como falava Mefistófeles[x].
A superpotência
Da magna ciência,
Do mundo escondida:
Quem não pensa é quem
De presente a tem
Sem canseira e lida[xi].
Se Riobaldo tivesse acertado o caminho,
poderia “ficar sabendo”, não teria experimentado as situações extraordinárias
que estavam para sobrevir, “para lá de tantos assombros”. “Um está sempre no
escuro”, só no fim, só “no último derradeiro é que clareiam a sala”. Ver, o
grande milagre: ver-nos. Para a produção da descoberta
radical, da revolução fundamental. Ver é um milagre ou uma profanação.
Mas não só é extraordinária o ver,
como também é extraordinário o visto, O poeta hoje aparece como um navegador
que, por própria experiência e por especulações com que se enriquece, busca a
descoberta de regiões inexploradas dentro da significação de sua cultura e de
sua época. Como encontrar sua própria experiência refletida, antecipada, nos
limites que registram a tradição? Como ficar no bom-senso, como encontrar-se
nesta margem, sem o risco da travessia?
O risco, presente na propulsão, na
produção do texto, é conseqüência de uma decisão pelo fantástico. É
proximidade daquela margem do rio. “Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O
senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade”[xii].
Entrar no fantástico é tornar ambígua a norma da margem.
— “Daqui vamos voltar?” — eu pedi, ansiado. O
menino não me olhou — porque já tinha estado me olhando, como estava. — “Para
que?” — ele simples perguntou, em descanso de paz[xiii].
O risco de uma decisão não está presente
enquanto houver o perigo de sedução. Riobaldo: “Disse que ia passear em Canoa.
Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um
realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia
responder que sim”[xiv].
Deixou-se levar: “Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco”[xv].
De uma decisão se pode dizer que é conseqüência —
depois de colher os dados, o sujeito toma uma decisão frente aos problemas.
Esta decisão é ação efetiva no domínio dos fatos. As palavras são comandadas
por uma direção em que se orienta, para um teleogismo fantástico. Essa
ordenação parte de uma decisão secreta, ideológica, que se desdobra em graus de
se deixar levar para o domínio dos fatos extraordinários. A escalada
progressiva do fantástico se dá por quebras sucessivas de ordens e de normas.
No texto literário a escalada ao
fantástico é atingida na comunicação drástica, isto é, na drasticidade, no
surpreender do apropriado, no estabelecer relações dialéticas entre expressões
do discurso poético e das estruturas sociais. Dir-se-ia que a decisão pelo
fantástico mobiliza todos os recursos da linguagem, submetendo-a a critérios
drásticos, mas seletivos, diante do conjunto das alternativas recorrentes. Eis
a geratriz compacta da estratégia do fantástico, da prosa da “palavra
inoportuna”. Da profanação do sagrado que instala um novo sagrado — a prosa de
ficção. Pois o Poder sempre recupera, para si, as áreas conquistadas pela
imaginação, institucionalizando-as a seguir, naturalizando-as a seguir, pois o
Poder é sábio. O inefável, institucionalizado pelo estatuto do Poder, atrasa
sua viagem, sua conquista. A inteligência mesma tira sombras do buraco, com a
pseudoluz da naturalização. Pois o insubstâncial em que se constrói a realidade
fantástica, como os bumerangues das velhas ilustrações, traz sempre tudo de
retorno. Repõe tudo, de volta, nos seus devidos lugares. Passa a fazer as
mesmas “frases de estilo”. E com reprimendas: Se Riobaldo tivesse sabido que
sua aventura teria retorno, sua errância pelo fantástico não teria dado em nada
(ou teria dado no drástico fantástico em que deu) , atravessaria aquela margem,
ter-se-ia deixado levar, por aquela mão “bonita, macia e quente”[xvi],
para lá de tantos assombros? Mas ninguém está no claro, a sala está escura. Não
vemos, não nos vemos. E o risco é certo, talvez necessário. A decisão, digo, a
sedução pelo fantástico, pelo quebrar da norma da margem, está sempre presente,
nas aspirações da literatura moderna. E depois, tendo retornado milagrosa e
exteriormente ileso à margem, ainda assim, através da comunicação drástica ao
Doutor, como se fora ao psicanalista, sonha o sonho ousado, como se a narrativa
fosse vida mobilizada, com todos os seus recursos e sua artimanhas: Suas
tramas.
Os termos “fantasia” e “imaginação”, no
pensamento filosófico, muito se aproximam, e quase se fecham, como termos
complementares. “Fantasia”, na tradição do pensar ocidental, se traduz como
“aparição”, “ação de mostrar-se”, “espetáculo”, “representação”[xvii]. Phantasia
encontra-se em Platão e em Aristóteles[xviii]. Fantasia, “phantasia”, geralmente é
traduzida por imaginação na antiga psicologia filosófica, como imagens pintadas
na imaginação[xix].
E o nome comum que pode significar tanto “aparição”, quanto “representação”.
A fantasia em Platão era
representação que surge do “aparecer”, contraponde-se ao conhecimento do ser ou
do real. São as sombras, ou reflexos, produzidos pelas coisas verdadeiras. E é
assim que, segundo Platão, as representações surgem na arte.
Aristóteles sistematizou o conceito:
Segundo ele, a fantasia ou imaginação não pode ser equiparada nem com a
percepção, nem com o pensamento discursivo, se bem que não haja fantasia sem
sensação, nem juízo sem fantasia[xx].
“Surgimento já tende ao encobrimento”, diz o Fragmento 123 de Heráclito[xxi],
isto é, a natureza gosta de ocultar-se. Emmanuel Carneiro Leão, ao traduzir o
texto, quase diz: O que surge se oculta (“Surgimento já tende ao
encobrimento”).
Por isso escreveu Nietzsche, na Origem da Tragédia:
Todo homem que for dotado de espírito filos6fico
há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e
vivemos, se esconde outra muito diferente[xxii].
A percepção deste sutil dado intangível é
o que os gregos chamavam de nous, órgão com que os gregos desconfiavam da realidade. Os sentidos
são, desta maneira, uma espécie de condição para a noesis, numa
condição imperfeita, bárbara: “Para os homens os olhos e as orelhas dos que têm
mentes bárbaras, são más testemunhas” — diz o Fragmento 107 de Heráclito[xxiii].
“A vida não é coisa terrível?” — pergunta
Riobaldo[xxiv].
Pois, por trás da realidade em que vivemos, não se esconde outra “muito
diferente, e, que, por conseqüência, a primeira não passa de uma aparição da
segunda”[xxv]?
Nietzsche nos diz, no texto citado, que Schopenhauer define “o. sinal
distintivo da aptidão filosófica na faculdade que alguns homens possuem de se
representarem os seres vivos e as coisas inertes como puros fantasmas”[xxvi].
E conclui que “o homem dotado de sensibilidade artística comporta-se para com a
realidade do sonho da mesma maneira que o filósofo se comporta perante a
realidade da existência”[xxvii].
Por isso, diz Hans Sachs, nos Mestres
cantores:
A arte da escrita e da poesia
É dizer a verdade do sonho[xxviii].
Prossegue Riobaldo: “O senhor saiba: eu
toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. (...). Eu quase
que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”[xxix]. São sombras, reflexos. “A harmonia
invisível 6 mais forte do que a visível”, diz o Fragmento 54[xxx].
o surgimento já tende para o encobrimento. O surgimento do que aparece para
Riobaldo, aquele Menino, o Sertão, o Urucúia é o fantástico, o reino em que
viver é contar. “A linguagem e a vida são uma coisa só”, disse Rosa em
entrevista a Gunter Lorenz: “O idioma é a única porta para o infinito”[xxxi].
Diz mais: “O Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o
exterior não podem ser separados”[xxxii].
Por isso, no dizer de Meyer-Clason, “o começo da sabedoria parece ser o ponto
de interrogação, a dúvida”[xxxiii].
Todos os escritos de Rosas são tentativas de “rodear e devassar
um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa
movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que g chamada “realidade”,
que a gente mesmo, o mundo, a vida”[xxxiv].
O fantástico, em Rosa, está no nível do
discurso.
O cotidiano pode ser definido pela
onipresença do enigma da convivência do real com o irreal, do conhecido com o
desconhecido. O fantástico é dual, antinômico[xxxv].
O fantástico trabalha a partir do
questionamento da realidade, que põe e que questiona como hipótese falsa,
através de acontecimentos estranhos que acontecem, e a que dá uma aura de
incerteza e para os quais não encontra nenhuma explicação satisfatória.
O fantástico é.vizinho do sobrenatural, o
sobrenatural lhe é familiar, pois tem a função de preparação, de introdução
espetacular de um quadro que não vai explicar.
Entretanto, o fantástico trabalha com a
atualidade, com o presente, com o retrato da realidade em que se inscreve. Este
é um retrato solipsista da realidade, uma imaginação solipsista, introduzindo o
mistério nas relações normais da vida cotidiana[xxxvi].
Assim, o fantástico pode ser descrito como
imanente ou natural, tratando de uma realidade que já é por si mesma
fantástica; como sendo a análise do aspecto sombrio da realidade humana;
aparecendo como um modo de exploração do inconsciente; e como uma combinação do
estranho e do maravilhoso.
A nenhuma destas explicações Irère
Bessière credita uma completa interpretação do fenômeno da literatura
fantástica, pois todas partem de um anti-racionalismo. Diz ela que parece mais
pertinente relacionar o fantástico com a pesquisa, conduzida de um ponto de
vista “racionalista”, a fim de colocar em questão as formas da racionalidade.
Trata-se de não confundir anti-racionalidade com irracionalidade, e não levar
os elementos da análise a se disporem em sistema maniqueísta de oposições[xxxvii].
O fantástico não estabelece ruturas
intelectuais, mas conjuga os contrários, o real e o irreal, o banal e o
estranho. A narrativa fantástica não resolve um esclarecimento cultural, mas
realiza um jogo do irreal e do inverossímil com determinada função da racionalidade,
para questionar a própria racionalidade vigente.
O fantástico é a polivalência dos signos
intelectuais e culturais, e não exatamente uma oposição entre razão e
imaginação. Ele marca, assim, a medida do real através da ambigüidade da
medida. O ingrediente obrigatório é o ceticismo que atravessa a razão e a desrazão.
Assim, é a razão mesma que comanda o fantástico, a razão nos seus movimentos,
numa sociedade em que a racionalidade com relação a um fim comanda as relações
interpessoais, e em que a razão social passa a ser a razão do Estado, detentora
do poder de organização e de manutenção da ordem e portanto de toda a vida dos
homens.
Eis porque a narrativa fantástica se
apresenta como a transcrição da experiência imaginária dos limites da razão,
conjugada com o sobrenatural de tal forma que a motivação realista é indissociável
de um princípio de irrealidade, e onde ora os dados da realidade empírica, ora
os do sobrenatural, resultam insuficientes para iluminar o enigma da realidade
que permanece, ela mesma, em sua natureza fantástica, sugerindo aquilo que em
verdade não pode ser, porque não pode ser explicado.
É claro que os economistas podem
explicar, e com que relativa facilidade, a natureza da realidade. Todo tratado
de princípios econômicos aspira a ser um modelo da realidade. Por. exemplo,
para Adam Smith a riqueza das nações resultava do diligente empenho de cada um
dos seus cidadãos em seus próprios interesses, pois defendendo seus próprios
interesses o indivíduo serve ao interesse público. Isso era em 1776. Os
economistas têm os pés no chão. Os romancistas, porém, querem ver além disto.
Não aceitam as explicações lógicas e visíveis. Para estes, a realidade vai
além, pois para eles existe a realidade da morte, que o economista exclui,
esquece, omite.
Os economistas não tratam da realidade a
partir de seu lugar de sujeito, mas lidam com dados (e riquezas) do trabalho e
da sociedade. O econômico exclui a desrazão, enquanto que a imaginação
literária transpõe o jogo da razão e da desrazão, pois quando o sujeito se
conhece como indivíduo por este jogo, reconhece que a realidade é
irrecuperável.
A narrativa fantástica é orientada
formalmente por uma dialética de reconstrução, como realização de projeto
criador. Utiliza quadros sociológicos que extrai do perceptível e do
sobrenatural, do banal e do extraordinário, a fim de definir a realidade, de
interferir nela: Por isso, pressupõe uma discussão ideológica. Uma crítica
ideológica esta imanente no texto fantástico.
A consciência do real que sustenta o texto
da literatura fantástica repousa na própria incerteza, na desrazão instalada,
na ultrapassagem da ordem e da desordem que são adivinhadas pelos homens na
natureza das coisas banais e na sobrenatureza das coisas estranhas, ao nível de
uma racionalidade formal, como a que se encontra por trás de todos os
movimentos do jogo da realidade do mundo do capitalismo avançado, onde
racionalidade se pode definir como produtividade e propensão para a
estabilidade, para o crescimento e para o progresso.
Assim, o destino e a desgraça do
capitalismo e o de crescer indefinidamente, o capitalismo está condenado a um
crescimento ilimitado, e a incerteza serve como instrumento de avaliação
apropriada do mundo contemporâneo, sobre o que os economistas desenvolveram
teses que decorrem da interpretação da realidade atual das economias de
capitalismo avançado, na base do conceito de opulência e socialização, onde
desenvolvem a idéia de que o incremento da produção não se coloca mais como
problema central da vida social, o que significa uma grande crise de incerteza
e a idéia de que já não se justifica historicamente o próprio capitalismo.
Assim, na dialética que se
estabelece, entre a necessidade que tem o capitalismo de crescer
interminavelmente, e o fato de que o avanço da produtividade não é mais o
problema principal das sociedades modernas, justificando assim um presumível
fim do capitalismo, reside a noção de realidade que oscila entre o presente e o
futuro do mundo moderno. Pois toda descrição e narração é uma confirmação, uma
reconstituição da realidade, e como evocação significa o apelo para a ordem de
uma sociedade vindoura. A literatura hoje recolhe as imagens e os discursos
sócioculturais, que aparentemente normais e necessários engendram o original e
o arbitrário. O estranho é o registro da relatividade do normal e do anormal.
Examina como as coisas chegam a se organizar e a se desorganizar num universo
em transformação. A literatura, por um processo de generalização, mostra a
facticidade do universo, abrangendo o natural e o sobrenatural. A questão do
fantástico não é, então, a transformação, mas o que está acontecendo nesta
transformação. O estranho, o inquietante, não é o sujeito, mas a ocorrência, a
desestruturação do mundo[xxxviii].
Nosso é o mundo da indeterminação.
Num mundo de realidades, fragmentadas, o maravilhoso que tende para o universalismo, cede lugar ao fantástico que atende para a singularidade. O fantástico sai do maravilhoso,
do qual conserva o pendor para o sobrenatural. O maravilhoso distingue-se do
fantástico porque o maravilhoso tende para o sujeito transcendental, para o
espírito absoluto, enquanto que o fantástico questiona a singularidade do caso,
a ambigüidade que impossibilita uma afirmação, impondo um clima de
indeterminação. O fantástico não chega à explicação, imprimindo-se ao
fantástico um caráter suspensivo, próprio do caráter de cada caso, fragmentado.
Trata-se de por uma questão sem esperar a resposta. Lugar do questionamento,
não dos resultados.
Esta impossibilidade de solucionar
questões que a si mesmo propõe, nos termos essenciais da literatura, deriva da
impossibilidade de solucionar problemas, já que todas as apresentações e
demonstrações das várias soluções possíveis são colocadas e novamente
questionadas ou relativizadas, ou sempre degeneram.
Estes fatos acima descritos são
responsáveis pelo caráter contraditório, ambivalente da literatura, seu aspecto
paradoxal. Ela se reconhece e se constitui como alteridade absoluta, que diz a
falência e a miséria, a essencial perplexidade do mundo moderno, a
arbitrariedade de toda razão e da realidade mesma, no nível do medo e do
terror, do desconhecido, dos dados subconscientes e do erotismo que fazem o
fundo de sua organização lúdica. Assim o fantástico constitui a forma literária
da loucura solidária. Instalando o estranho, melhor instala a crítica: visão
presumivelmente solipsista e reacionária do devir histórico.
No mundo moderno, o fantástico não está
somente no reino das coisas ditas anormais, sobrenaturais, mas se encontra
dentro da própria realidade, quando se consegue vê-la.
Fantástico, pois, não é apenas um desvio
da norma, mas e a norma mesma, quando submetida à crítica.
Por isso, em se tratando da sociedade
moderna de capitalismo avançado, a denúncia freqüentemente está no campo do
fantástico, de que Kafka foi um dos pioneiros e que, acusando ou imaginando a
realidade, atesta o absurdo do domínio da violência.
O protesto artístico contra este tipo de
dominação também se inscreve no fantástico. A arte é inútil, radicalmente
inútil. No radicalismo desta inutilidade reside a força de seu protesto numa
sociedade que sempre visa ao lucro e à utilidade.
No quadro da sociedade moderna, a
literatura assumiu uma colocação de “realismo fantástico”, como crítica da
sociedade de capitalismo monopolista. Denuncia a ideologia tecnológica
dominante, a organização econômica da administração. Sua função, através do fantástico,
é revelar as mascaras que a dominação tecnológica encobre. O realismo
fantástico ataca duramente a tecnologia científica como elemento de dominação
dos homens.
A literatura latino-americana denuncia as
sociedades tecnológicas.
A reação literária latino-americana e
muito patente no fantástico, do tipo de Guimarães Rosa. Pois a arte não
protesta às claras. O protesto artístico é mais sutil e por isso mesmo mais
radical. A arte mostra o que não quer admitir. A arte deforma a realidade que
critica. Mostre o “avesso”, o “inverso”, usa de estranhos processos (cada
escritor tem os seus) para atacar o problema da miséria, do intervencionismo.
A revolução radical — tarefa da literatura
— não se dá pela simples substituição de um sistema por outro, mas pela
reeducação do próprio homem, e é por isso que toda crítica social deve começar
por uma revisão do sistema educacional, para ver se os jovens estão sendo preparados
para ter sucesso na vida ou para serem homens menos ambiciosos. O sistema
educacional vigente nasceu sob o modelo do capitalismo liberal de livre
iniciativa. A história da filosofia da educação pode chegar a provar isto. A
educação na antigüidade, orientada para a pólis, e presente na Ética
a Nicômaco de Aristóteles, difere radicalmente
dos ideais do pragmatismo das escolas modernas, onde a competição foi
estimulada. E a tecnologia-científica da escola de hoje ainda esta orientada
para o saber racional, e não para a formação de um caráter e de uma integridade
madura que caracterizaria o homem menos ambicioso. Educar é descondicionar o
homem. Educar á função literária.
Por “revolucionário” poderíamos
compreender uma atitude de total rejeição da natureza de dominação racional,
não no sentido meramente de querer mudar, mas no sentido de negação, de
emancipação interior, de abertura dos espaços interiores do sentimento.
A liberdade não está no espaço da
exterioridade. Para a emancipação, liberdade poderia estar na existência de um
espaço interior, utópico.
O caráter revolucionário que definimos
significa que sé podemos atingir a emancipação, hoje, pelo estado interior de
liberdade, isto é, de espaço. E espaço da subjetividade.
Espaço significa uma negatividade completa
(não significando os indivíduos levados a abandonarem suas funções sociais de
solidariedade), no sentido de que, no interior de si mesmo, o indivíduo abre
amplo espaço onde não imperam as ordens do totalitarismo tecnológico. Onde não
há medo, portanto, do fracasso.
Entretanto, o indivíduo mesmo, nas
sociedades modernas, está impossibilitado de sair da norma e do funcionamento
de dominação social relacionado com um fim, mantendo-se interiormente em
permanente trabalho. O problema não é o trabalho e a ocupação, mas o saber
porque interiormente temos de manter-nos continuamente ocupados, sem nunca
haver, nos períodos de vigília, a mínima pausa para que seja possível abrir o
espaço da liberdade. Em outras palavras, porque não deixamos de ser
trabalhadores, mesmo quando não estamos trabalhando. Acreditamos que mesmo o
chamado lazer e uma ocupação e um preenchimento dos espaços interiores. E
espaço não significa que estejamos dormindo, ou condicionados como que
hipnotizados.
Reconhece Habermas que, para o progresso
científico e técnico não há nenhum substituto, nenhuma possibilidade de mudança
desta para outra nova ciência que fosse mais humana.
A racionalização institucional, diz
Habermas, se faz através da liberação comunicacional, da livre discussão
pública dos temas, que forma e consolida a vontade política do Estado, como
elemento estabilizador da permanente desestabilização. É a preferência ao livre
arbítrio de expressão, que pode permeabilizar o constante feed-back do
Poder, humanizando-o e orientando o quadro institucional sempre orientado para
melhores fins “racionais”. Entretanto, o modelo dinâmico do capitalismo, que
tem estrutural necessidade da opinião pública “formada”, controlada ao nível da
despolitização, mostrou sempre uma certa resistência ao tipo de comunicação
artística.
Habermas estabelece, para reformular o
conceito de “racionalidade” de Max Weber, uma distinção entre “trabalho” e
“interação”, ou comunicação; trabalho é a atividade instrumental ou uma escolha
racional, ou uma combinação desses. Obedece às regras técnicas aprendidas pelo
saber empírico. As condutas da escolha racional se orientam segundo uma
estratégia aprendida do saber analítico. E a estratégia implica deduções
provenientes de regras de preferências e sistema de valores. A atividade
racional visando a um fixa realiza, assim, objetos definidos.
Por atividade comunucacional ou interação,
se entende a interação mediatizada pelos símbolos.
O processo de evolução de técnica
corresponde à atividade racional do trabalho. Entretanto, em lugar de tratar a
natureza como objeto, diz Habermas que seria possível dispor tecnicamente dela,
ou ir ao seu encontro como co-participante, numa interação possivelmente
harmoniosa. Podemos pesquisar a natureza fraternal, em lugar de trabalhar a
natureza explorada. Poderíamos comunicar-nos, em lugar de trabalhar a natureza
sem comunicação. Somente na medida em que houvesse esse tipo de competência
comunicativa é que poderíamos reconhecer na natureza a espécie humana,
reconhecer o outro. O reconhecimento do outro é fundamental para o
estabelecimento do diálogo com a natureza e entre os homens, através da
mediação dos símbolos.
2.3 - Terceira Parte: A Recuperação da Subjetividade
2.3.1 - Estática da Recuperação
Não vemos distinção entre crítica formal e
social. Ou ao contrário, é a forma que expressa o conteúdo. É claro que existem
críticas essencialmente formalistas, e estáticas essencialmente sociológicas.
Seguimos de perto a doutrina
homológica da sociologia do romance de Goldmann. Entretanto não estamos longe
do conceito de herói problemático de Lukács (s/d): O romance se
caracteriza pela ruptura insuperável entre o herói e o mundo, engendrando uma oposição constitutiva (Teoria do romance).
O romance participaria de uma natureza dialética entre comunidade e
ruptura. O herói, louco ou criminoso, busca inautenticamente valores autênticos
num mundo inautêntico (teoria próxima da de Girard, como vê Goldmann, 1976). A
forma literária nasce da necessidade de exprimir um conteúdo essencial (Lukács)
, e o romance e a criação imaginária de uma sociedade regida pela degradação.
Mas a sociologia do romance procura verificar a homologia entre forma
romanesca e estrutura social. No caso de Grande Sertão:
Veredas estas duas categorias são antagônicas, por isso mesmo
problemáticas. Mostramos no decorrer deste texto em que são antagônicas. Aliás,
todo este texto visa a este fim: mostrar o antagonismo entre forma romanesca e
estrutura social em Grande Sertão:
Veredas. A obra e, como diz Goldmann, a concretização das tendências
próprias de um grupo (no caso da comunidade literária), consciência que se deve
conceber como uma realidade dinâmica, orientada no sentido da critica social.
Os teóricos marxistas sempre pensam que a vida social não pode exprimir-se no
plano literário senão por intermédio da consciência coletiva: no romance de
Rosa estudado, acreditamos que esta comunidade de consciência seja da própria comunidade literária, que no Brasil
sempre teve, pelo menos até 1960, grande influência na vida da sociedade e no
caráter do Estado, no sentido de um humanismo sempre constante. Aceitamos, que
a busca de valores do personagem se dá em meio à luta por valores autênticos
numa sociedade inautêntica (e o nosso personagem não é Riobaldo, mas Diadorim),
e a vida econômica tende a se tornar implícita em todos os membros da sociedade,
ou seja, a consciência coletiva converte-se num reflexo da vida econômica e, no
capitalismo monopolista, tende a desaparecer. Isto cria um problema de
literatura assimilável (consumida) e grande literatura. A grande literatura
(oposta a trivial) não é consumida pela massa que ela critica, exceto quando
“facilitada” pelos médios, ou
promovida pelo marketing, que faz com
que um filosofo obscuro tenha uma edição de quase cem mil leitores que consomem mas não assimilam (ou não lêem).
Portanto a consciência coletiva que é
veiculada pela grande literatura é, afinal a consciência de uma minoria (de um
elite intelectual, literária) que nem sempre é assimilável pela massa.
Assumimos uma atitude dialética
hermenêutica em que forma e conteúdo se implicam, e em que na forma reside o
conteúdo que é expresso. Este trabalho toma um sentido em que estas
“categorias”não se separam, privilegiando, entretanto, os aspectos sociológicos
do romance sobre os aspectos formais, mas a forma é o conteúdo. Embora o que a
forma diz é o que nos interessa sociologicamente, é necessário lembrar que
Diadorim e forma, embora com significados. Aqui se encontram os refrões
temáticos, a espécie de tematização e pontuação de motivos recorrentes,
reiterantes, ao mesmo a que sempre volta o texto, caracterizando uma espécie de
pedagogia da repetição propositalmente dada.
2.3.1.1 - Um Problema Hermenêutico.
Ricoeur chega a dizer do “enxerto do
problema hermenêutico sobre o método fenomenológico”, pois o problema da
hermenêutica constitui-se anteriormente à fenomenologia de Husserl. O problema
se coloca nos limites da exegese, isto é, do método de compreensão de textos a
partir de sua intencionalidade, sob duas “vias”, a via “curta”, ou heideggeriana,
e a via “longa”, ou aquela que o Autor pretende percorrer[xxxix].
A chamada “via curta” é a da
ontologia da compreensão,que lança os problemas do método ao plano de uma
ontologia do ser finito, para com tal método compreender não como modo de
conhecimento, mas como modo de ser. Isto pode ser dito de outra maneira, diz
Ricoeur, ou seja: O que é um ser cuja existência consiste precisamente em
compreender? Essa é assim a pergunta da ontologia da compreensão[xl]
A chamada
“via longa” também tem a ambição de chegar a uma ontologia, mas gradativamente.
Seu método e uma epistemologia da compreensão, que se estende sobre as ciências,
que constitui mesmo como reflexão sobre diversos saberes, sobre a psicanálise,
sobre a fenomenologia da religião etc.,procurando ver quando esta epistemologia
da interpretação é atingida ou animada, solicitada por uma antologia da compreensão,
que coloca o ser-conhecer como centro de seu pensar, o ser cujo ser é conhecer
onde o sujeito é o pólo intencional que se coloca como sujeito cognoscente[xli].
Este
método liberta-se da tradição positivista, não mais é a continuidade das ciências
do espírito que imitam as ciências da natureza: “Diz respeito a um ser junto ao
ser, anterior ao encontro de entes particulares”[xlii].
Coloca em frente do processo cognoscente a presença do interprete de seu
objeto, como traço ontológico. O compreender torna-se um aspecto de um projeto
do ser, de uma abertura ao ser. E a questão da verdade não é mais adequação e
método, mas manifestação, presentificação do ser, para um ser cuja existência
consiste na compreensão do ser mesmo.
Este método confere um
problema de inteligência de textos, não com o enfoque semântico mas com a ótica
reflexiva, que parte de Schleiermacher e passa por Dilthey, que vê os textos
como expressões da vida fixada pela escrita, através de conexões psíquicas e de
encadeamentos históricos, pois o símbolo é uma estrutura de significação em que
um sentido direto designa por acréscimo outro sentido indireto que só pode ser
apreendido através do primeiro[xliii].
A
interpretação consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em
desdobrar os diversos graus de interpretação implicados numa significação
literal.
Símbolo e
interpretação se tornam, assim, correlatos pois só há interpretação onde houver
sentido múltiplo, e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos torna-se
manifesta.
Assim toda
hermenêutica é, no fim, compreensão de si mesma. Explicita ou implicitamente, a
hermenêutica é a compreensão de si mediante a compreensão do outro, pois tal
método se coloca como auto-reflexão na interpretação de texto. O máximo de
interpretação ocorre quando o sujeito compreende a si mesmo compreendendo o
texto. E, interpretando o lugar da literatura no conjunto complexo da sociedade
moderna, o sujeito passa a ser o ser cujo ser é conhecer, esse traço ontológico
que desvela no homem, questionando qual o papel do homem mesmo no panorama da
sociedade de organização do complexo industrial-militar, pois se este é o mundo do homem, passa a ser o mundo que
utiliza o homem como meio-produto, que se sustenta no homem, onde o homem não é
mais sujeito, mas objeto, onde não mais é fim, mas recurso de produção de uma riqueza
alienada dos valores humanos.
Assim, o
questionamento da ontologia da interpretação se coloca sempre que a existência
é colocada a noção de sua coexistência ou existência social articulada com as
forças mecânicas de uma tecnologia-científica que não coloca o ser do homem
como base de seu desenvolvimento. Trata-se de ver se os sistemas econômicos e
de produção de riquezas deixam algum espaço para a reflexão autocompreensiva, e
que não seja esta atividade o tipo de proposição de uma burguesia que,
entediada com a ociosidade em que vivia, ou traumatizada com as guerras
mundiais devastadoras se põe a pensar em sua própria decadência, temendo o seu
fim. A reflexão ontológica se infiltra, pois na interpretação sociológica, não
compreendendo o social sem o existencial.
Para
Schleiermacher a hermenêutica era a arte de evitar má compreensão. Linge diz
que a hermenêutica “tem sua origem nas brechas da intersubjetividade”[xliv].
David Linge é o editor do Philosophical
hermeutics de Gadamer. Nela, o passado tem grande poder no fenômeno da
compreensão:
De acordo com sua definição
original, hermenêutica é a arte de esclarecer e mediatizar por nossos esforços
de interpretação o que foi dito por pessoas que encontramos na tradição. A
hermenêutica opera todas as vezes que o que foi dito não é imediatamente
inteligível[xlv].
Gadamer
compreende o exercício da razão hermenêutica como uma dupla compreensão.
Compreender não é para ele, uma mera repetição do conhecimento. Ele vê a razão
hermenêutica postulada como dupla consciência, a partir de duas experiências de
alienação que encontra na experiência concreta: a experiência da alienação da
consciência estética e a experiência da alienação histórica. Quando o problema
é o conhecimento de si esta dupla consciência se exerce no jogo da
consciência/inconsciência. Assim, se o sujeito tem sede, e sede de um
refrigerante, temos de considerar que há, por trás da sede real concreta da
consciência, o resultado de uma incompreensão gerada pela propaganda, que é uma
invasão na vida “privada” pela opinião pública. Assim, como alienação do
julgamento estético, pode dar-se que o peso da autoridade condicione, por uma
espécie de propaganda cultural, o julgamento do valor. A alienação da
consciência política faz com que possamos considerar naturais os fatos que,
vistos por olhos críticos, são realmente dolorosos de aceitar, mas com que
estamos muito acostumados a ponto de julgá-los “naturais”.
Hermenêutica
é a teoria ou arte da interpretação. Como arte “arte” inscreve-se numa tradição
do último período da antigüidade, ou de mais longe, em que existia a chamada
filosofia prática que viria até o final do séc.XVII e constituía o marco
sistemático de todas as “artes” na medida em que estavam a serviço da “polis”[xlvi].
Filosofia
ai significa “ciência”, isto é, incluía os conhecimentos objetivos e os
conhecimentos da verdade, desde que não fossem
adquiridos pela empiria do trabalho. A filosofia prática se opunha a filosofia
teórica que abarcava a “física” (saber da natureza), a matemática, a teologia,
a política. A oposição moderna entre teoria e práxis nada tem a
ver com isso,
pois a teoria era uma práxis, o supremo nível da práxis.
“Práxis”
pode ser explicado como o comportamento dos seres vivos encontra-se
entre a atividade e o encontrar-se em um estado ou situação. O homem, além de uma práxis,
dispõe de uma “prohairesis”, isto é, uma antecipação e escolha previa.
A
delimitação da “práxis” humana envolve a ciência teórica (práxis suprema) e a
“poiesis” (fabricação que se baseia no saber, base econômica da vida da pólis)[xlvii]
Portanto, a
Hermenêutica, como teoria da interpretação, não é simplesmente uma teoria, mas
ela esboçou sempre a exigência de que sua reflexão sobre a interpretação
promova a práxis.
Por
exemplo, diz Gadamer que a “Querelle des Ancies et des modernes” foi uma preparação
para o despertar da consciência histórica moderna; e o Romantismo, que se
converteu em pioneiro dessa consciência histórica, na volta as fontes
originais. Assim, um dos grandes méritos de Heidegger foi desfazer a evidência e mostrar a maneira como o pensamento moderno
sob o domínio do conceito de ser “esquecido” criou o nada claro conceito de
consciência que representa o principio da filosofia moderna[xlviii].
A
Hermenêutica põe a certeza iluminista em posição problematizadora. Pois
questiona a evidência, recusa-se a
explicar completamente um fato dado, a calculá-lo, a aprender a produzi-lo.
“Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em si mesma”[xlix],
a interpretação faz referência a finitude do ser humano e do seu conhecimento,
pois mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado é
perguntar pelos interesses que nos guiam. A Hermenêutica filosófica está mais
interessada nas perguntas do que nas respostas. Só quando compreende o sentido
motivador da pergunta pode começar a buscar uma resposta: temos de compreender
o que se esconde por trás da pergunta:
Só teremos alguma
probabilidade de compreender os enunciados que nos preocupam se reconhecermos
neles nossas próprias perguntas[l].
— pois a vida se encontra numa
espécie de equilíbrio entre nossos impulsos inconscientes e nossas motivações
conscientes. Por isso, diz Gershom Scholem
a interpretação alegórica aparece espontaneamente
toda vez que idéias novas entram em conflito com as de um livro sagrado que
parecem contradizer, necessitando assim de um processo de conciliação[li].
Diz Scholem, no seu artigo “A
significação da Lei na mística judia”, que
Muitos, e entre os espíritos
cabalísticos os mais criadores adotaram este método, encontrado apropriada
tendência a transmitir suas idéias pessoais, ao mesmo tempo que davam a aparência
de que estas idéias saiam das Escrituras. Não é fácil sempre dizer num
determinado caso se é a Escritura que verdadeiramente deu impulso à exegese, ou
se ao contrário, a exegese é uma criação artificial, destinada a cobrir o fosso
que separa freqüentemente da visão antiga das coisas da nova visão[lii].
Escrevendo sobre Scholem,
Habermas diz que o filólogo na reflexão sobre seu objeto se transforma em
teórico[liii].
A Hermenêutica se inscreve nos domínios do conhecer,
assim como a política nos do agir, e a
Estética nos do senti. É uma tarefa que vem de Kant que, no espírito
geral da crítica, dizia que deve-se medir a capacidade do conhecer antes
de se enfrentara natureza do ser[liv].
O homem não é radicalmente um
estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência.
Compreender esses sinais é compreender o homem[lv].
— isto é o
psiquismo não pode ser atingido, mas podemos captar aquilo que ele visa.
Husserl estabelecia que o psiquismo se caracterizava por sua intencionalidade,
ou seja, por visar um sentido capaz de ser identificado, “O que sou para mim
mesmo só pode ser atingido através das objetivações de minha própria vida”[lvi].
A
compreensão da vida sô pode ser atingida quando a subjetividade se objetiva,
isto é, na objetividade relativa das obras de arte, na religião e na filosofia
é que a vida se exprime de modo mais completo. É nesse sentido que se reparam falar
(que remete ao falante) e dizer (que se remete as próprias coisas ditas)
de Heidegger.
Assim o
texto é a mediação pela qual nos compreendemos à nos mesmos, através do “mundo
da obra” de que fala Ricoeur. A interpretação se apropria de uma proposição de
mundo que se encontra não atrás do texto, “como uma espécie de intenção
oculta”, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre
revela. “Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto”[lvii].
[i] ROSA, G.
(1976), p.52.
[ii] Ibidem
p.52.
[iii] BAKHTIN, M. (1981), p.98.
[iv] Ibidem
p.98.
[v] ROSA, G.
(1976), p.52.
[vi] BAKHTIN, M. (1981), p.10.
[vii] HEGEL,
G.W.F. (1969), p.94.
[viii] ROSA,
G. (1976), p.52.
[ix] Ibidem
p.52.
[x] Goethe, w, (1981), p.121.
[xi] Ibidem
p.121.
[xii] ROSA,
G. (1976), p.82.
[xiii]
Ibidem p.82.
[xiv] Ibidem
p.81.
[xv] Ibidem
p.81.
[xvi] Ibidem
p.81.
[xvii] MORA,
J.F. (1971), p.634
[xviii] PETERS, F.E. (1977), p.256
[xix] CUVILLIER, A. (1976), p.63.
[xx] MORA,
J.F. (1971), p.634
[xxi] HERÁCLITO, (1980), p.137.
[xxii] NIETZSCHE, F. (1972), p.37.
[xxiii] HERÁCLITO,
(1980), p.125.
[xxiv] ROSA,
G. (1976), p.233.
[xxv] NIETZSCHE, F. (1972), p.37.
[xxvi]
Ibidem p.37.
[xxvii]
Ibidem p.37.
[xxviii]
Ibidem p.36.
[xxix] ROSA,
G. (1976), p.15.
[xxx]
HERÁCLITO, (1980), p.85.
[xxxi]
LORENZ, G. (1971), p.267.
[xxxii]
Ibidem p.267.
[xxxiii] MEYER-CLASON, C. (1969), p.107.
[xxxiv] Ibidem
p.107.
[xxxv]
BESSIÈRE, I. (1974), p.29.
[xxxvi]
Ibidem p.31.
[xxxvii]
Ibidem p.35.
[xxxviii]
Ibidem p.29.
[xxxix]
RICOEUR, P. (1978), p.29.
[xl] Ibidem
p.10.
[xli] Ibidem
p.13.
[xlii]
Ibidem p.12.
[xliii]
Ibidem p.15.
[xliv] GADAMER, H. G. (1977), p.XII.
[xlv] Ibidem
p.98.
[xlvi]
GADAMER, H. G. (1983), p.57.
[xlvii] Ibidem
p.60.
[xlviii]
Ibidem p.68.
[xlix]
Ibidem p.71.
[l] Ibidem
p.73.
[li] SCHOLEM, G.G. (1956), p.46.
[lii] Ibidem
p.46.
[liii] HABERMAS, J. (1980a), p.122.
[liv] RICOEUR, P. (1977), p.21.
[lv] Ibidem
p.25.
[lvi] Ibidem
p.27.
[lvii]
Ibidem p.58.
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