segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

2.2.3 - A Crítica Social

2.2.3 - A Crítica Social

Os homens, diz Arendt, são seres condicionados. Tudo aquilo com que o homem entra em contato demorado torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O que quer que toque a vida humana ou tudo com que entre em duradoura relação, toma imediatamente o caráter de condição da existência humana. Por isso ao homem, que pode conhecer, determinar e definir a natureza de todas as coisas com que vive e que estão ao redor, e o que ele não é, é difícil o conhecimento de si mesmo, ente condicionado que e. “O olho, que tudo vê, não se vê” diz um aforismo de Wittgenstein. A filosofia grega era objetiva. Descartes, no classicismo, pensou uma filosofia do sujeito: Seu Discurso sobre o método, que é um texto dedicado a orientar a razão para dentro do sujeito, o demonstra classicamente. Esse caminho chega ao idealismo alemão, pois Kant, com sua crítica da razão, e Hegel, com o desenvolvimento do pensamento negativo (o objeto é o que o sujeito não é) chegaram ao conceito de subjetividade-objetiva, fundindo dialeticamente sujeito e objeto. A história da filosofia poderia ter parado aí. Não parou. Nietzsche quebra a estabilidade. Heidegger, no nosso século, “corrige” o caminho do pensamento, repensando a tradição metafísica que havia tomado a direção errada da errância do ser originário. O problema do sujeito atinge, então, um nível nunca visto, pois o problema não está além, mas aquém. Entretanto, para as sociedades modernas, o homem mesmo ainda é desconhecido.
No conhecimento metafísico, desaparecido quase totalmente das especulações do mundo moderno, existia o espaço da vida contemplativa dentro da pólis grega, em que todo movimento objetivo, toda atividade do corpo e da alma, bem como o discurso da razão (sempre objetiva) devia cessar por completo. A vida contemplativa era o primado da existência do filósofo. Tomás de Aquino definia, na Summa Theológica, a contemplação como quies ab exterioribus motibus[i].
Ao contrário, que caracteriza o pragmatismo alienante da época moderna é que o homem só conhece aquilo que pode fazer, não o outro, não o próprio interior. Ou, como dizia o budismo theravada, o homem é mente, e a mente sabe o que faz, mas não se conhece.
Façamos aqui a distinção (que Hannah Arendt estabelece) entre imortalidade e eternidade, para esclarecimento desta alienação do mundo moderno.
Imortalidade significava continuidade no tempo através da realização de grandes feitos, obras e feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir obras e de realizar feitos imortais, os imortais podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses. Na antigüidade clássica, havia os que ambicionavam à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, percebe-se uma alienação e uma falta de compreensão do real.
Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo no sentido estrito do termo, a visão da eternidade ainda que passageira. Diz Arendt[ii] que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vive a experiência do eterno. Se escreve sua experiência, ambiciosa a imortalidade, pois procura deixar para a posteridade algum vestígio de si, a fama.
A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se morrer é deixar de estar entre os homens, a experiência do eterno é morte. O contrário é a preocupação com a fama, com a imortalidade. Eternidade e imortalidade são dessa maneira, integralmente contraditórios.
Tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, pois ninguém pode suportá-la durante muito tempo. O condicionado e mortal não pode encarar o eterno na sua eternidade, senão indiretamente, rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do mundo do homem. A imortalidade , ao contrário, reside entre os homens, e criação humana. O eterno não, não é condição de condicionamento humano, não é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem, quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento, silenciado pela vida contemplativa. Heidegger sabia disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade humana, e uma iluminação que não se consegue com o movimento do esforço, mas com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, mas nasce quando há radical negação. Nem pode ser aprisionado pelo discurso, pois não pode ser objetivado: “O Tao que tem nome não é o Tao”. O eterno e mais espaço do que razão. Está onde o “eu” não se encontra. Nem está delimitado no tempo, na convenção e no produto humano, pois o eterno é presença. E por isso não pode ser “usado” para a glória e fama do homem. Mais: o eterno não está no sujeito, porém vigora quando desaparecem sujeito e objeto. Ou quando não há espaço entre observador e coisa observada, como diz Krishnamurti.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.
A palavra “social” é de origem romana. Os gregos não a conheceram Societas significava, para os romanos, uma aliança entre pessoas para um fim específico, “como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime”[iii].
O pensamento grego era diretamente oposto a esta organização “social”: essa associação natural cujo centro é constituído pela casa e pela família.
A pólis marcava a destruição de todas essas unidades organizadas à base do parentesco. A sociedade representa a família. O ser político, o viver na pólis “significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência”[iv]. Para os gregos, forçar alguém mediante a violência, ordenar ao invés de persuadir eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da pólis[v](fecham-se aspas mas não foram abertas), característica do lar e da família, na qual o chefe da família imperava com poderes despóticos; caracterizava a vida dos “bárbaros”, cuja organização era comparada à doméstica. Toymbee analisou este estado de coisa no seu livro Helenismo, em que mostra como a vida familiar era considerada pelos gregos como um lugar onde os participantes estavam sujeitos à perda da liberdade, e à descaracterização de suas individualidades. A vida familiar, diz ele, mantém os homens presos a um elemento por que não optaram e a que não podiam renunciar sem uma violação à própria natureza.
Diz Toynbee:
A vida familiar mantém a humanidade como serva de uma Natureza não-humana. No seio da família, o ser humano não é personalidade independente, com um espírito e uma vontade próprios — é um rebento na arvore da família, que por sua vez e um ramo da árvore evolucionária da vida, cujas raízes mergulham nos abismos do subconsciente[vi].

A tradução latina do homem como animal rationale é um erro de interpretação. Para Aristóteles, o que elevava o homem não era a razão, mas o nous[vii], isto é, a capacidade de contemplação cujo conteúdo não pode ser expresso por palavras. Todos que viviam fora da pólis eram aneu logou, destituídos não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual só o discurso tinha valor e sentido, e não a compulsão, não a violência, característica dos povos bárbaros. Hoje o mundo ocidental vive a nostalgia do antigo mundo grego. Pois na pólis, a mais hábil arma era a capacidade de discorrer uns com os ou-
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tros, e de argumentar com palavras e não com a ação violenta. Neste sentido vive o mundo moderno fora da pétts, num estado pré-político, em estranha regressão.
Da pólis para a sociedade opera-se uma mudança de pensamento político. Na sociedade, o pensamento político já não é arte política, mas economia, economia social. O que chamamos sociedade passa a ser um conjunto de famílias organizadas do ponto de vista hoje burguês, num ser estrutural chamado Estado. Para os gregos, tudo que fosse econômico não era político, mas estava relacionado à esfera do apolítico da vida privada. (isto é, privada de liberdade) da família. A vida privada era o lugar doméstico, privado por definição do espaço público, onde o dialogo era franco. Não é sem razão que os textos de Platão se chamam diálogos, isto é, através do logos. Na vida pública estava o espaço da liberdade dos homens livres, não da dependência, da interdependência. E os escravos eram considerados seres desprezíveis não porque estivessem na condição escrava, mas porque se sujeitavam à escravidão, não preferindo a morte, o suicídio, e não tendo a necessária coragem para a vida de risco e de perigo que constituía a vida dos homens livres, onde o perigo apesar de tudo estava sempre presente: pois outro conceito grego eminente era de que a liberdade — supremo bem a atingir — não significava segurança (inferior condição de sujeição a que estavam sujeitas as crianças e as mulheres) , mas perigo e aventura, característica dos heróis. E assim a literatura grega é uma longa série de batalhas e de mortes, uma ampla apologia da aventura do espaço, da não resignação do homem com qualquer restrição ao seu existir. Homero, pois, principalmente, foi o pai da ética grega. E um herói grego é a antítese de um burguês.
Portanto, na organização da moderna sociedade burguesa reina o domínio da necessidade, não o espaço da liberdade. O homem moderno é, por definição, passivamente adaptável, resignado e satisfeito com a sociedade e com o bem-estar que esta pode proporcionar-lhe. Por isso, um ser descaracterizado. A política da pólis não era meio de segurança social. As sociedades que se seguiram à pólis grega representaram um conjunto de interesses; Seja a sociedade feudal, seja a sociedade burguesa, seja a sociedade socialista.
A liberdade, dentro da sociedade moderna, significa não a liberdade individual, mas a liberdade social. E a força da violência, antes consideradas meros acontecimentos da esfera privada doméstica, é desempenho atual do Estado, encarregado de vigiar e punir.
A força e a violência nascem, portanto, universalidade, da raiz da sobrevivência. Para os gregos, toda forma de governo, tal como o entendemos hoje, representava um estágio totalitário, pré-político, em que predominam a submissão e a falta de espaço, formas desprezíveis de viver.
Modernamente, as sociedades dominadas por um estagio de capitalismo avançado assistem a uma conjunção da ciência e da técnica para a produção neutralizadora, através dos meios de comunicação, das chamadas “democracias de massa”.
A política deixa de ser o lugar da argumentação, do discurso; passou a ser economia-política, científica. O complexo econômico que aparece a partir do século XII, evolui para “complexo industrial-militar” dominado pela burocracia de Estado, anulando o indivíduo, eliminando a vida pública e organizando a vida privada.
O racionalismo implantou a tecnologia científica como principal fator de verdade, afastando a validade da literatura, atingindo todas as artes, que atualmente se servem dos meios de comunicação de massa para vigorar. A técnica representou a exacerbação do ideal de racionalidade, embora sobre o sacrifício dos antigos valores humanos, provocando uma crise dos humanismos. Por isso, desde o romantismo, a literatura apelou para a valorização da desrazão e do inconsciente, para os valores da emoção, redutos finais da humanização do homem. A literatura, a partir do romantismo, sempre lutou contra a racionalização institucionalizada pela ciência e pela técnica, que passaram a representar uma unificação de um saber totalitário. A literatura sempre procurou nos últimos anos promover a consciência do outro, colocando este problema de auto-conscientização em luta aberta contra a ideologia de uma sociedade industrial. A literatura de nossa época revela um esforço de preservação de intersubjetividade e, se razão é ciência, literatura é liberdade.
O problema se acha colocado por Manuel Antônio de Castro:
A literatura como questionamento, abandonando a expressão formal, empreende uma crítica da sociedade questionando os seus discursos. Discursos enquanto instituições. O resultado imediato é que o conceito de literatura sofre um abalo e uma recolocação concreta mais ampla. Não se limita mais no chamado discurso refinado, expressão e veiculação da instituição dominante (...): Literatura marginal, literatura de mimeógrafo, literatura depoimento, romance-reportagem, etc[viii].

Assistimos no nosso mundo à violência ideológica e econômica de um poder administrativo e de uma burocracia tecnológica criticados indiretamente pela literatura.
E o problema central da arte, hoje, é compreender o seu espaço de legitimação, fora do poder tecnológico controlador de tudo. Pois “a arte permanece como uma modalidade do real”[ix].

O historicismo nos diz que por razões lógicas, hoje, é impossível prever o curso futuro da história.

O escritor moderno, não só duvida do homem lógico da burocracia selvagem e bélica, como também se pergunta se temos de ser lógicos e a que esta razão vai-nos levar, a todos. Pois a razão não tem trabalhado nos últimos séculos em nenhum projeto realmente humano. Este problema deu à literatura um aspecto de realismo fantástico.
Já que o racionalismo revelou-se como manifestação de um totalitarismo desumano, o escritor moderno pergunta-se se é necessário ser racional, ou se no irracionalismo pode-se encontrar caminho para a “salvação”. Pois o racionalismo hoje é intervencionista. E a literatura atual se produz diversificando-se como desrazão.
Assistimos hoje à mudança do capitalismo liberal para o capitalismo de organização burocrática-tecnológica, assumido pelo Estado. Assim, a única certeza que resta, é a do Estado. Este Estado exerce uma dominação “fantástica”, e no Terceiro Mundo os reflexos desta situação são ainda mais avassaladores. Este Estado promove uma distribuição do Poder, hoje não mais localizável, não havendo mais uma classe detentora do Poder, exercido pelo próprio Estado. Vivemos, em todo o mundo, sob um Poder disseminado, massificado, burocrático, invisível, tecnológico e militar. Por isso lutar contra a ideologia dominante é quase lutar contra um fantasma, e os escritores sabem disso. Lutar contra a ideologia dominante é lutar contra uma força que sempre vence. E então desenvolveu-se fortemente, na nossa época, a vanguarda da literatura, que é o que reflete a perplexidade do homem diante do mundo do despontar do ano 2.000.
As massas se satisfazem com a ilusão de que legitimam o Poder tecnológico, de que o progresso está a seu favor. Pois a racionalidade tecnológica é mais forte no que se refere a uma tecnologia política de controle da opinião pública, para submeter as massas às categorias de “racionalidade”, internalizando normas de comportamento.
Não sabemos se hoje, nos países desenvolvidos, podemos falar em luta de classe, pois estas estão muito dissolvidas na massa quase uniforme, de modo que o Estado e a massa constituem, hoje, duas classes. A sociedade burguesa em alguns casos se acha totalmente dissolvida em sociedade de massa.
Em tudo, predomina a existência de uma ciência política que detém o saber, deixando para o campo do onírico e o consentido a ação retardada da literatura e das outras artes.
Os discursos individuais têm perdido completamente o vigor e a força, pois a massa sé admite os valores da técnica e da informação.
Talvez esteja nos sistemas educacionais o último resíduo de humanização de massa, e não é à toa que Riobaldo era professor, antes de ser jagunço.
A sociedade de massa dissolveu o indivíduo. O homem moderno perde cada vez mais o seu vínculo com a tradição de valores humanos, e seu dialogo agora tem sido com máquinas e computadores. Isto o que ocorre com os vídeos da TV e com os eletrônicos.
Desta forma, cabe perguntar sobre o porque da luta institucionalizada pela vida, provocada pelos ideais de uma performance individual de maior produtividade.
A “liberalidade burguesa” não durou muito tempo: Sucumbiu à dialética do Iluminismo, e do capitalismo que veicula o Iluminismo.
A publicidade moderna reflete essa massificação indiferenciada do cotidiano, invadindo a vida privada, pautando-lhe a norma e o valor, formando o indivíduo dentro de sua casa.
O processo de “modernização”, provocado pelo desenvolvimento da ciência, foi em última análise desejado e trabalhado na própria atividade criadora do processo de trabalho humano, visando a ‘‘racionalizar’’ os meios de produção.
Para ajustar as atividades culturais dos indivíduos com a sociedade tecnológica, as massas são levadas a adotar um modelo de vida, no qual a ilusão de felicidade e de satisfação das necessidades (reais ou artificiais) exclui o recurso a reflexão, a critica, aceitando as massas a “reflexão” dos meios de comunicação de massa, a chamada “opinião pública”. Essa opinião pública é formada através da desinformação, pois não se dão fatos que possam por em risco a estrutura social. Em todo o mundo impera uma grande taxa de desinformação, logo num mundo em que a técnica de informação está muito desenvolvida.
As “verdadeiras causas” dos fatos são propositalmente omitidas, sendo assim o nosso mundo comunicacional é o mundo da desinformação e do caos contraditoriamente.
O que caracteriza a alienação moderna e o fato de que o homem moderno só conhece aquilo que ele pode fazer, não conhece o outro nem conhece as causas do processo da sociedade em que vive.
Pois a técnica não esta a serviço da organização harmoniosa do mundo moderno. Ao contrário. Contraditoriamente, a técnica não produz a ordem democrática. A razão deste fenômeno é que a técnica se interessa pelo recorte, pelo particular, por interesses específicos e restritos. Não tem visão para o horizonte, O horizonte, mesmo contraditório. Interessa-se por fatos de sua momentânea especificidade. Assim, em vez de produzir um mundo organizado, possibilita o aparecimento do choques violentos de interesses. A técnica só assegura a ordem daquilo que pode dominar. Como há a existência de várias tecnologias empresariais e estatais diferentes, esta especialização tecnológica tem produzido o caos. Além disso, a tecnologia não se importa com o homem. Produz a seco, sem planificação do projeto humano. Não se importa com suas conseqüências distantes e contrárias ao homem. A técnica só tem a visão do progresso imediato de fatos específicos, particulares, de sua especialidade em cada caso. O conjunto harmonioso da sociedade e do mundo não está nos interesses da técnica, mas somente o problema imediato, pois a técnica é a capacidade de solucionar problemas imediatos, não problemas futuros. E, postergando os problemas para o futuro, a técnica legou ao final de nosso século um acúmulo insustentável de problemas a resolver. Nossas atuais crises são decorrência da irresolução do passado.
As mais respeitáveis formas de saber estão encasteladas no poder de decisão, não na capacidade de reflexão. A decisão é a privilegiada capacidade da razão planificadora de tudo, contraditoriamente incapaz de planificar um estado de coisas harmonioso e pacífico. Pois a técnica tem a capaciade de organizar e planificar tudo, mesmo as violências da história, mesmo a agressão ambiciosa dos Estados, mesmo o desejo de sucesso e progresso, mesmo a dúvida que se descortina como futuro do homem. Por isso, a técnica gera o caos.
Vivemos na sociedade racional dos funcionários da técnica, o que dissolve o indivíduo no poder dos números e das decisões burocráticas. A história tem-se feito por desvios históricos, onde se tem perdido a memória das tradições, em favor de um expansionismo e de um evolucionismo tecnocrático. O indivíduo não tem mais lugar na tradição moderna, na tradição do novo. Houve uma desvalorização da vida pública, em favor da vida funcional. As estruturas de poder se sustentam agora cientificamente, sem diálogo. Computadores não perguntam, respondem. Portanto, o Poder nunca esteve tão violento, totalizante e insensível, legitimado pela ciência das pequenas determinações.
Como escreveu Martin Heidegger
A ciência em todos os seus setores é hoje uma questão técnica e prática de adquirir e transmitir conhecimentos. Dela, como ciência, não poderá partir nunca um despertar do espírito. É de espírito que ela própria necessita[x].

Hoje, toda a cultura assiste a uma decadência da confiança no cientificismo tecnológico, herdado do século XVIII. Os rumos da História, na segunda metade do século XX, colocou (não seria colocaram) no homem um sentimento de dúvida, quanto à sobrevivência do gênero humano, ameaçado pelo próprio uso desta tecnologia de que tanto se vangloriava. Esta dúvida é muito radical nas consciências dos escritores, hoje ameaçados pelo totalitarismo.
Esta dúvida também se pode dizer que parte dos fundamentos da cultura de massa moderna. A arte, a cultura de nossa época se vêem perplexas, diante da complexidade racionalista que se implantou.
Os escritores latino-americanos, Guimarães Rosa inclusive, nem sempre fazem “política”. Mas a política da arte é sutil, fora do controle da superfície, mais transformadora. Não visa a transformar a sociedade, mas o homem. Transformar o homem é mutação histórica. Humanizar e conscientizar o homem é ativo instrumento do fazer. A história recente, e o tratamento que alguns estados deram a intelectuais desencantou os ideais dos escritores latino-americanos, provocando-lhes um grave problema de consciência.
Na América Latina, como em todo o Terceiro Mundo, estes aspectos desumanos do estado tecnológico ainda são mais esmagadores, e é aqui que podemos ver o estado tecnológico com mais clareza, com mais distâncias, delineando-se mais o seu perfil de indiferença aos valores humanos. É aqui que ocorrem as “guerras localizadas”, aqui as crises econômicas são mais catastróficas, e aqui (e na África) está a nova literatura, que nasce de tudo isto e no meio da Fome.
A literatura, no Terceiro Mundo, cresce à medida que estes povos crescem em conscientização e fortalecimento de suas culturas. Os intelectuais do Terceiro Mundo, principalmente os escritores de obras de literatura, têm sido prestigiados e protegidos por organizações internacionais, pela imprensa mundial por isso. Escritores latino-americanos foram, na última década, traduzidos e aclamados; e é nos problemas do Terceiro Mundo que se encontra aquele sentimento de novo mundo emergente.
Este é um dos aspectos históricos que traça o perfil do mundo do capitalismo de serviço, regido pelo poder do Estado tecnológico.
O problema da arte acentuado por Daniel Bell[xi] é que a nova estrutura de classe se identifica não mais por sua base ocupacional, mas por seus gostos culturais e seus estilos de vida, que se encaixa numa “atmosfera social permissiva”, na qual o que é permitido na arte é permitido na vida. Assim, já que houve uma identificação entre desejo e condições materiais e exemplos empíricos (drogas, orgias, happenings, roupas); a conclusão de Bell é a de que a evolução do capitalismo fez com que a luta entre a razão e o desejo entre numa nova fase, na qual triunfariam o instinto e a irracionalidade. Não mais se maxivalorariam (maxivalorizariam) a economia e a poupança, a eficiência, a otimização, a racionalidade funcional. Tudo isso entra em conflito com as tendências culturais de hoje, pois a cultura enfatiza correntes anticognitivas e antiintelectualista, que estão enraizadas no retorno a padrões instintivos. De um lado há a ênfase na racionalidade funcional; do outro lado há disposição apocalíptica e modos anti-racionais de comportamento.
É esta disjunção que caracteriza a crise histórica da sociedade ocidental. “A longo prazo essa contradição cultural e o mais profundo desafio à sociedade”[xii].
Por isso, diz Adorno: “As categorias estéticas devem ser definidas por sua relação com o mundo não como refúgio deste”[xiii].
Habermas acredita que não é mais possível aplicar diretamente “duas categorias fundamentais da teoria marxista, a saber o conceito de luta de classe e o conceito de ideologia[xiv]. E Daniel Bell acha que o conflito do futuro será o choque entre o profissional tecnológico e o homem destituído de saber tecnológico[xv].
A antinomia da arte moderna se deve à situação do “mundo administrado”. A “fuga da subjetividade” é hoje uma postura revolucionaria. Essa subjetividade é a introversão em busca de um novo humanismo. E é também conhecimento. Não se pode deixar de considerar que na subjetividade também se encontra importante fator cognitivo, como conhecimento do outro.
Mas, apesar disto, diz Marcuse que as “perversões sexuais expressam a rebelião contra a subjugação da sexualidade a ordem de procriação e contra as instituições que garantem essa ordem”[xvi]. Essa tese se opõe a de Daniel, citada há pouco.
A arte trágica da modernidade passa pela violência (como aliás sempre passou). Marcuse, em Eros e repressão diz que o instinto de morte é destrutividade não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão[xvii]. Entretanto, a memória da gratificação está na origem de todo pensamento. Diz Marcuse que não importa procurar onde foi que a racionalização industrial foi útil para o progresso como um todo; o fato é que se manteve a dominação com a racionalidade. Diz ele que a dominação é diferente do exercício racional de autoridade.
A autoridade é inerente a qualquer divisão de trabalho (a qualquer tipo de sociedade) , deriva do conhecimento e se limita a administração das funções necessárias ao progresso do todo. Ao contrário, a dominação é o que é exercido por um determinado grupo (ou indivíduo) a fim de se manter e consolidar-se numa situação privilegiada[xviii]. Não é sem razão que Walter Benjamin, nas suas reflexões sobre a modernidade, disse que o verdadeiro herói do mundo moderno é a figura do operário que, na vida diária, enquanto tem vitalidade, vive um esforço heróico. A figura do herói clássico estava associada à imortalidade. O herói moderno se relaciona com a transitoriedade.

2.2.4 - Arte e Sociedade

A partir do séc. XVIII, a literatura deixou de ser a reflexão da classe dominante, passando a papel secundário, consentida como atividade destituída de saber e de utilidade e vista com benevolência pelo censor oficial no mesmo nível do culto. E, além disto, ainda sob a égide da tutela oficial, como acontece com o culto oficial, ou seja, as práticas que justifiquem a ordem constituída, ou instituída.
Hegel já anunciara a perda da aura artística. Concebe a arte e a religião como formas do saber absoluto, formas essas reveladas pela filosofia, formas enquanto livre-pensamento do Espírito Absoluto. Hegel p6e em movimento a dialética da superação dos limites da lógica. Marx realizou, então, a crítica primeiro da religião, depois da filosofia, para finalmente concluir com a superação da filosofia coincidindo com a superação do poder político, ou seja, uma crítica ideológica que vê o ideal de Espírito Absoluto como a ideologia do Poder Absoluto[xix].
O lugar privilegiado que assumia a arte entre as figuras do Espírito Absoluto desaparece, na medida em que não assume função para o sistema econômico político. A religião passa a organização, e a filosofia passa a cientificidade. As necessidades “residuais”, então, podem ser satisfeitas nos “sistemas de necessidades”, onde se encontram arte e religião. Mas mesmo assim a arte permaneceu singularmente invulnerável à crítica ideológica até bem pouco tempo. Quando também a arte começa a sucumbir, diz Habermas, a critica ideológica, é porque a religião e a filosofia já não mais têm lugar de sobrevivência[xx].
Tudo isso envolveu a literatura com a desrealização, pois a emancipação ou libertação da realidade tecnológica só se dá espaço da irrealidade, como problematização do real, que e agora a mais radical forma de protesto.
A literatura representa um esforço, um reduto de lutas, de recuperação dos valores dos indivíduos, dos valores da vida humana propriamente dita.
A denúncia da arte é causada por “surrealismo” fantástico e irracional. Mas a arte reflete o caos da realidade, o caos da vanguarda tecnológica.
Desde a Terceira Sinfonia de Beethoven, o libelo romântico em favor das ilusões perdidas e românticas, até a musica moderna, ouvimos os ecos de uma cultura que luta contra formas mecânicas de viver.
Os instrumentos da arte não se têm revelado ineficazes de orientar o caminho, em prol de um projeto em que o humano seja salvo. Mas não assistimos à falência das manifestações do humanismo, tais como a religião, a filosofia, a arte, que procuram interferir poderosamente na hegemonia econômica.
Na sociedade antiga, o artista, o filósofo, o político e o operário tinham uma só arte, uma só cultura. E as sociedades modernas têm-se revelado incapazes de ter um sentido orientado pela arte. Ao contrário, o que se observa é a fragmentação da produção industrial a resolver os problemas, a ocupar os espaços antes ocupados pelos artistas.
O homem labora com o corpo. Trabalha quando produz seu mundo artificialmente: e sua ação é a atividade que se exercita entre os homens[xxi]. O labor assegura a sobrevivência; o trabalho o produto; a ação, a história. Literatura é ação.
Adorno vê a sociedade tecnocrática moderna com certo pessimismo, acreditando ser muito difícil humanizar o capitalismo. Na sua Teoria Política, ele critica a manipulação de que é vitima a produção artística contemporânea. Para ele, a arte traduz os antagonismos sociais[xxii].
Diz Adorno que as condições sócio-econômicas do mundo moderno impedem a esperança de uma liberação da arte como elemento da superestrutura, já que a arte não consegue escapar do domínio exercido pela ideologia dominante . Na atual sociedade capitalista, a literatura e um elemento da superestrutura, e por isso se encontra hoje num impasse dentro do capitalismo. Ela foi liberada das funções culturais, religiosas e morais que lhe eram atribuídas, e transformou-se num produto industrial, numa mercadoria que se consome e que não quer servir de veículo da ideologia dominante
O estado tecnológico deixou para o âmbito do consentido, e da ação retartada (retardada ou retratada) do domínio do sonho, o campo da literatura e das outras artes . A literatura que no passado teve papel de orientação social, hoje encontra um certo ensurdecimento por parte das decisões administrativas do Estado, e por parte do vasto público narcotizado pelos canais de comunicação de massa. Assim, a literatura tem encontrado fórmulas de utilizar estes canais de comunicação de massa. De um jeito ou de outro, escritores não descansam na luta pelo futuro, plantando sementes, muitas perdidas, outras não. Muitos problemas já têm sido levantados por obras de arte literária, por intelectuais em interferência direta.
Pouco espaço resta ao texto de arte literária: Literatura, agora, é arte de abrir espaço.
A sociedade capitalista de organização, diz Adorno, encontrou um lugar definido para a arte, como produto industrial. Esta é uma forma de dominação [xxiii].
Perguntam os escritores pela existência de um Poder não-violento, por um Poder consensual e não perverso e, literatura é crítica, mas não consegue sobreviver fora da superestrutura: o escritor necessita dos grandes meios de produção industrial, dos veículos de comunicação de massa que estão a serviço da superestrutura industrial para sobreviver, para existir. O exemplo deste fenômeno no Brasil se encontra na musica popular que aparenta ser arte proletária, pode até nascer na classe operária, mas só tem o direito de existência quando é administrada pelos meios de produção industrial e pelos canais de comunicação de massa. Fora da superestrutura, a arte não tem sobrevivido. Esta é a contradição com que vive dentro da sociedade de capitalismo avançado.
Mas a interferência da arte na sociedade é indireta e subliminar. A arte atua milimetricamente, agindo numa área mais básica da sociedade: A arte atua nas consciências.
A atuação das artes nas consciências humanas não se dá “as claras”, mas a literatura e outras artes têm mostrado o meio de que dispõe a cultura para educar, “politizar”, isto é, para humanizar o próprio homem, fazendo-o sair de si para ver o outro, fazendo-o ver o problema do outro, vendo no outro um seu amigo e igual.
A atuação interna, no leitor, na consciência do leitor, da literatura é muito eficaz, pois a literatura é muito convincente, isto é, o receptor da arte literária fica mais tempo diante da mensagem artística. Os receptores da pintura, da música, do teatro e do cinema, têm menor contato, em termos temporais, menor grau de intimidade do que o leitor de um romance. O leitor demora mais com a mensagem, vive mais tempo com ela. A mensagem, os sentidos do texto, têm mais tempo de consolidar-se, o mundo e mais demoradamente delineado, a literatura atua mais na consciência do receptor do que as demais artes.
Além disto, a literatura é discurso, tal como o pensamento, e assim há um maior intercâmbio de formação de conceitos, que se dão no texto do leitor. O texto é direto ao leitor, rapidamente, pois interfere na consciência.
A literatura é assim mais convincente, e o problema que pode enfrentar hoje seria a perda de público, mas esse problema tem sido resolvido pelos próprios professores de literatura nas escolas.
O papel do professor de literatura, no mundo de hoje, é cada vez mais importante, a medida que as religiões organizadas têm perdido terreno, público e força. O professor de hoje substitui, em parte, o orientador religioso de outras épocas.
Um dos últimos redutos, uma espécie de gueto humanístico do mundo moderno, é o constituído pela literatura e pela arte em geral. A arte atesta e protesta contra esta utilização instrumental do homem pela técnica.
Entretanto, a literatura que antes falara as massas, agora na época das massas e recebida apenas pela elite intelectual. Este é um dos seus problemas atuais.
A arte, para Hegel, é um momento do espírito humano, descobrindo-se a si próprio, como ser cultural. “A poesia baseia-se no princípio da percepção imediata da alma por si mesma e em si mesma”[xxiv] . Representa o espírito para o espírito; representando, não só a interioridade, como as condições do mundo exterior. A poesia é capaz, diz Hegel, de representar um objeto em toda a sua intima profundidade — o espírito objetiva-se para si mesmo através da fantasia. “A fantasia é, pois, a base geral de todas as formas artísticas e de todas as artes particulares, ela é e permanece matéria sobre a qual a arte trabalha”[xxv]. É a poesia, dentre todas as artes, que tem o caráter predominantemente libertador, representando a arte em geral, na conquista de uma totalidade.
A poesia tem, pois, interesses espirituais, e trabalha para a intuição interior. Seu objetivo é o reino infinito do espírito. Em Hegel, espírito é a interiorização da natureza: o espírito subjetivo é a sede dos fatos psíquicos (alma, consciência); o espírito objetivo se manifesta no Direto, nos costumes; o espírito absoluto se manifesta na arte, na religião e na filosofia.
A missão da poesia é evocar a potência da vida do espírito, e tudo aquilo que, nas paixões e sentimentos humanos, nos estimula a nos comove ou desfila tranqüilamente diante do

nosso olhar meditativo, quer dizer, o reino ilimitado das representações, das ações, das façanhas, dos destinos humanos, a marcha e as peripécias do mundo e a maneira como ele é regido pelos deuses[xxvi].

A poesia, pois, exprime a representação espontânea do verdadeiro, um saber que não separa ainda o geral do particular, pois na poesia há a vida na sua figuração unitária, aprendendo tudo de maneira independente, numa unidade: Toda a razão profunda e significação das coisas. Aliás, para Hegel, a arte privilegia o particular, o individual; cada parte, cada momento é infinitamente interessante, porque dotado de vida, sem cair nas descrições pormenorizadas e enfadonhas, mas naquilo que pode ser apreendido num só golpe de vista.
Adorno diz que o lugar da arte tornou-se incerto no todo[xxvii]. A autonomia que a arte adquiriu, depois de ter deixado de ser de corte (ou da Igreja) , vivia da idéia de humanidade. A medida que a sociedade foi deixando de ser humana para tornar-se racional, essa autonomia foi ficando abalada. A medida que os ideais de humanidade estiolaram-se, a emancipação da arte tornou-se complexa. Assim, segundo as palavras de Schönberg, pinta-se um quadro, e não o que ele representa: toda obra de arte moderna aspira a um ideal de fidelidade consigo mesma. Por isso, Adorno desenvolve sua tese de ser a segunda potência (a arte é cópia na medida em que a realidade fornece o que lhe é recusado)[xxviii].
Assim, o crescimento e a automação das sociedades moderna leva o indivíduo a um constante movimento de conformidade e de imitação, contrário à criação, à imaginação criadora. E arte e inatividade são conceitos que se excluem. Arte é ação. E é arte de abrir espaços.
Em todas as épocas, a arte só fora consumida por uma elite de connoisseurs, e de artistas; mas essa elite, antes, tinha força bastante para irradiar nas massas uma espécie de influência e de educação do gosto, fazendo com que a sociedade se encontrasse a si mesma através de suas criações artísticas.
O romântico era ajudado pelas musas; o naturalista cria a palo seco, num mundo desencantado. O impressionista vive a infância perdida: Proust, Mann, Pompéia. A primeira revolução industrial encontrou o mundo cheio de homens de letras aliados. A segunda, só encontrou economistas. Entre os quais, Marx. O século XIX acaba em 1914. A melhor crônica do final do século XIX é O Capital. O Capital é a crônica do valor. Mas valor aí é o valor do uso, valor de troca, valor-derivado da mais valia, que produz capital. O Capital pode servir para a crítica literária da Recherche, d’Os Buddenbrook. No caso brasileiro, essa burguesia teve o estigma de João Romão e a crítica de Mário de Andrade. A burguesia brasileira não era a “alta burguesia” dos Buddenbrook, dos Guermantes. Era a burguesia da classe média que aparece em seu analista mais cruel: Machado de Assis. No Brasil, parece que o século XIX atravessou a crise 1914-19l8, veio até a burguesia de José Lins do Rego, de Jorge Amado. Burguesia de plantação. Até Getúlio Vargas, as forças vivas da burguesia nacional estavam nos canaviais, nas plantações de cacau, nos cafezais. É aí que as encontram nossos escritores, mesmo Graciliano.
Mas na Europa, a guerra 14-18 matou o século XIX. O impacto desta guerra foi decisivo tanto para as artes quanto para as sociedades. Os modernismos europeus saíram desta catástrofe.
Assim a arte de massa surgiu com as técnicas de reprodução, já que os clientes da cultura de massa, os consumidores da arte como produto industrial não podem consumir uma arte autônoma, mesmo considerada como algo superior. A experiência histórica da modernidade, contida nesta crítica, é a da desilusão, não tanto com a decadência da arte, da religião e da filosofia, diz Habermas, mas quanto aos mitos de sua superação[xxix]. As religiões transformaram-se numa constelação de crenças privatizadas. A filosofia realiza a aliança de uma filosofia empirista com uma filosofia racionalista, com a nova física. E a arte mais sofisticada tornou-se autônoma, assumiu posições de retaguarda para abrigar as vitimas da racionalização da vida do capitalismo monopolista. A arte passou a ser uma espécie de território reservado à satisfação daquelas necessidades que, no processo material da vida da sociedade racionalizada, tornaram-se ilegais, isto é, uma necessidade de um convívio mimético com a natureza, tanto a natureza exterior quanto a natureza do próprio corpo: a necessidade de uma vida em comum solidária, a aspiração à felicidade longe dos imperativos da racionalidade instrumental, o espaço da imaginação e da espontaneidade do comportamento.
E houve até uma identificação de um modo de vida em que o que se passa na arte “libera-se” na vida. Problema ético apontado anteriormente.
A sociedade, que os naturalistas viram, era feia e corrupta. Os românticos idealizavam o futuro, os realistas amargaram o presente. O escritor foi-se fechando em si, como no parnasianismo. O escritor ocidental foi-se distanciando da corrupção para o protesto do imaginário, da utopia, da fantasia exótica. Depois, saindo de seu isolamento parnasiano, o escritor não mais sabia ver o social; da sociedade ele só conseguia ter impressões de memória distante: foi o impressionismo. A realidade era amortecida pelo recurso à distancia temporal da “crônica de saudade”, ou da “recherche” do tempo passado. A realidade eram aquelas remotas reminiscências do passado, dos companheiros de escola, da avó em Combray. A literatura ocidental recusou a aceitar a face da nova vida. Em protesto, volta-se para meras impressões. Reinventa a face da realidade. Cria os grandes romances das reminiscências.

2.2.5 - Função Literária

Os homens se despojaram de sentido: O Iluminismo retira do mundo os conceitos universais, atacando-os como superstição e medo de demônios. A partir de agora a matéria deve ser dominada, e o que não pode ser útil e calculado é suspeito.

O iluminismo se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os homens. Ele os reconhece, na medida em que os pode manipular. O homem de ciência conhece as coisas, na medida em que as pode produzir[xxx].

Assim, o Iluminismo, combatendo a mitologia, se transforma, ele mesmo, em mitologia totalitária, mitologia do saber matemático irrecusável, caindo sob o encantamento mítico que pretendia destruir. O princípio da imanência, a idéia de que tudo se repete, sustentado pelo Iluminismo contra a imaginação, é o princípio do próprio mito. Aparecem novos fetiches, próprios do Séc. XVIII, como por exemplo o fetiche da igualdade.

A venda sobre os olhos da Justiça não significa somente a proibição de intervir no direito; ela diz ainda que o direito não provém da liberdade[xxxi].

Depois, os alvos da crítica do racionalismo iluminista foram, como já se disse, a fé e a arte. A arte teria de comprovar sua utilidade. A fé servia aos interesses da ordem instituída. E de certo modo, a religião uniu-se a razão para banir o princípio da feitiçaria ainda existente na arte: A imitação. Na obra de arte, este princípio ainda prevalece, tenta renovar-se no realismo, embora de maneira convencional, como atestaram os estudos enfeixados no volume Littérature et realité, de Barthes, de Bersani, de Hamon, Riffaterre e Watt (ver Bibliografia). A arte, como a feitiçaria, fixa um domínio próprio fechado em si, subtraído da contextura do existir profano, onde vigem leis especiais, particulares. Assim, o feiticeiro começava por delimitar o espaço limitado contra todo o mundo circundante, espaço próprio para o jogo de forças sagradas. E assim na arte destaca-se o real, do domínio fechado do verossímil.
Quanto à fé, foi condenada como má-consciência. Toda honestidade de quem tem f6 foi logo posta em dúvida, na contradição que lhe é inerente. A matança, as guerras em nome da fé, as torturas da Contra-reforma foram excessos justificadores desta má-fé. E a fé manifesta quase sempre seu caráter autoritário, de aspiração ao poder e ao despotismo fanático. A fé passa a ser o poder dos sacerdotes, sob o domínio de quem es­tão os crentes, e quem viola os símbolos sagrados cai, em nome de potências supraterrenas, vítima dos poderes terrestres, cujos representantes são os aparelhos de repressão da sociedade sacerdotal. Desde sempre, “o poder fica de um lado, o obedecer do outro”[xxxii].
A partir do Iluminismo, entretanto, esta separação entre o poder e o obedecer tende a se dissolver, a se interpenetrar, passando a própria burguesia a assumir a postura de autodominação, embora reconhecendo na classe administrativa dominante, nas instituições do Direito, da Justiça e da Policia os representantes vivos dos símbolos de dominação da ordem e do equilíbrio. A divisão do trabalho, na qual a dominação se dissolve socialmente, e a existência de um partido único, no caso soviético, servem a autoconservação de todo dominado. A opressão exercida pela sociedade moderna exibe sempre, hoje, as características de opressão exercida coletivamente, pela ditadura do coletivo. E essa unidade de coletividade e dominação, no século XX, que unifica as forças de unidades social das sociedades modernas.
O Iluminismo teve desde cedo um poderoso inimigo: o romantismo que se lhe segue, e que durou pouco, pois logo depois o racionalismo dissolveu a rebelião romântica. Mas a partir do Iluminismo o homem começa a lutar consigo mesmo, isto é, a lutar contra a razão, em favor da emoção. A luta, entre a razão científica e a emoção humana se desenvolverá durante a história seguinte, uma guerra contra computadores.
A partir do Iluminismo, o saber experimenta um pavor mítico contra o mito.

Ele o avista não somente em palavras e conceitos não esclarecidos, como presume a crítica semântica da linguagem, mas em qualquer expressão humana que não tenha lugar na contextura de fins daquela autoconservação. A proposição de Espinosa Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum contém a verdadeira máxima de toda a civilização ocidental, na qual se aplacam as diferenças religiosas e filosóficas da burguesia, o si-mesmo que depois de todos os traços naturais terem sido metodologicamente eliminados como mitológicos não devia ser nem corpo, nem sangue, nem alma, nem mesmo o eu natural — constitui, sublimado em sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, da instancia legisladora do agir. Quem se abandona à vida sem referir-se racionalmente a sua autoconservação recai, segundo o juízo do iluminismo e do protestantismo, na pré-história[xxxiii].

As sociedades modernas posteriores quiseram liberar de novo o prazer. Mas, como há muitos anos o prazer tinha sido esmagado, na milenar coação ao trabalho, as sociedades aprenderam a odiá-lo, de forma que o prazer liberado de hoje tornou-se vulgar, sem a aura gloriosa dos tempos heróicos, estropiado de autodesprezo.
As sociedades modernas descobriram também o socialismo. Mas nem mesmo o socialismo se libertou do racionalismo totalitário iluminista, elevando a necessidade como condição fundamental, base do todo social, burocratizando e depravando e espírito, de tal forma que, segundo Horkheimer-Adorno, o socialismo se tornou herdeiro do capitalismo burguês. Da dominação da burguesia sobre o proletariado, chegou-se a autodominação proletária.
De forma que, seja no capitalismo, seja no socialismo de modo soviético, a ideologia racionalista do Iluminismo está presente, a serviço da dominação e do engano das massas controladas, e somente a emoção, e não a razão, poderá algum dia servir de força para a liberdade dos povos.
Uma das principais conseqüências da devastação iluminista foi o estilo Rococó, que aparece durante a primeira metade do século XVIII, como arte decorativa, diminuindo a majestade do Barroco. O rococó foi o “último estilo coerente”[xxxiv], pois o século XIX testemunha o desaparecimento dos “estilos de época”, caracterizando nossa época fragmentada e descaracterizada, cheia de estilizações, mas não de estilo (por exemplo, a Art Nouveau foi uma estilização neo-rococó)
O Rococó é um aspecto do Século das luzes, representado pelo poeta da razão, Alexandre Pope. Pope atravessa, com sua poesia (que muitos garantam que não é) o universo da matemática do século das luzes, escrevendo mais ensaio em verso do que poesia. O racionalismo Newtoniano convivia com a poesia de Pope, poesia “expositiva”, “ensaística”. O poema é Rococó, isto é, o poema torna-se “idéia e ornamento”[xxxv]. Pope operou uma redução da natureza humana, articulada num sistema filosófico harmonioso, a Ordem Natural, límpida e certa, como a luz clara do Iluminismo que produziu um filósofo do porte de Kant, o homem da razão na idéia de uma ordem inteligível.
Mas o principal arquiteto dessa Ordem foi Newton, criador dessa organização mundial matemática, geométrica, cartesiana. A ilusão iluminista foi a de confiar nas intuições inatas, claras como os axiomas da geometria. São idéias geométricas, intuitivas, que constroem o mundo diante de nossos olhos: o mais belo dos sistemas, com Deus e tudo. E a percepção da conexão universal de Locke, um empirista, com tamanho, figura, número e movimento. É este o catecismo iluminista, como a idéia de evolução foi o catecismo do século XIX.
A liberdade do século XVIII era devido à crença de que o homem era o ser dotado de razão, por que podia autogovernar-se. Isto aparece na Declaração dos Direitos Humanos, na teoria econômica de Adam Smith e mesmo no Manifesto Comunista de 1848.
Curiosamente, o Iluminismo chamava de ficções (como idéias), as noções de Direito, Poder, Propriedade e mesmo noções geométricas como linhas e superfícies. Mas as verdades apareciam como se pudessem ser demonstradas, como hipóteses geométricas. Como nestes versos de Pope:
Olhe o nosso mundo, contemple a corrente de amor
combinando tudo que está embaixo com tudo que está em cima.
Veja a Natureza plástica trabalhando para este fim,
os átomos individuais tendem um para outro.
Atraem e são atraídos e o vizinho
E formado e impelido a abraçar o que esta a seu lado.
Veja a matéria, em seguida, investida de varias vidas,
pressionar ainda para um centro, o bem geral[xxxvi].

O iluminismo produziu a botânica de Buffon, já que a botânica é ciência característica do século XVIII. Buffon, achava que as verdades físicas estão fundamentadas nos fatos, como uma sucessão de fatos semelhantes. Sua História natural pretende ser uma verdadeira ciência da observação.
Se o Rococó foi um estilo, o Romantismo foi um sentimento, o sentimento da subjetividade. Foi um hiato no desenvolvimento da razão. Foi uma rebelião passageira.
A partir do séc. XVIII a literatura deixou de ser a voz orientadora das classes em ascensão, das elites dominantes, e os escritores começaram a perder prestígio no que se referia a capacidade de orientação. Utilizaram a grande imprensa, nascente na época, apoiaram-se no público da classe media, consolidado então. A razão questionou a validade literária: A literatura teria de justificar-se, legitimar-se, mostrar sua validade. A justificação literária foi o jornal, com novo papel de orientador das massas, no romantismo. De conselheiro real, o escritor passou a formador de opinião pública. Mas esse público burguês corrompeu-se logo com o enriquecimento crescente da classe média. Durante quase todo o século XIX,o nível da economia européia esteve estável ou crescente. O enriquecimento da classe média perverteu o gosto, danificou o relacionamento do texto com o público, no fim dó período romântico. De Balzac a Flaubert, de Alencar a Aluízio Azevedo, assistimos a mudança da ideologia do texto literário. No caso brasileiro, do romantismo de Alencar ao naturalismo de Aluísio, o Brasil perdeu a graça, perdeu o encantamento que tinha no texto de Alencar. Dos verdes mares, dos bosques que ladeavam o Paquequer, ao cortiço de João Romão, o aviltamento da sociedade é acentuado.

O séc. XVIII marca, portanto, o início de nossa época, como uma época do pensar que “faz progressos”, libertando o homem do jugo da natureza para submetê-lo ao jugo do Estado, em que foi depositado, posteriormente, a culpa de toda opressão. Libertava-se, assim, o homem do mito e da feitiçaria, por meio da razão.
Inicia-se o reinado do poder do conhecimento científico, do saber da razão, a serviço da economia burguesa, no campo, na fábrica, nas armas. Aparece a técnica, cujo objetivo não são os conceitos, as imagens, nem a contemplação, mas o método, a exploração do trabalho humano, o capital. Os homens dominam os homens, dominando a natureza. O que importa não é aquilo que os homens chamam de verdade, mas a eficácia, a operação metódica. O que importa não são os discursos, mas a descoberta de fatos que nos auxiliem e nos equipem melhor para a vida.
Os românticos compensaram nos jornais a perda de prestígio que os escritores sofreram desde a Revolução Francesa, e se refugiaram no individualismo[xxxvii]. A geração de 1830 (Sthendal e Balzac) resignou-se na sua crítica, acentuando a diferença do público que serviam. A geração seguinte fechou-se ainda mais na arrogância de um individualismo quase insensível (o do parnasianismo)
A vitória da classe média reacionária foi acompanhada do declínio do socialismo e da literatura, seguida de uma decadência do gosto. Aparece a censura, a criação de uma nova burocracia que sustentava o sistema, o estabelecimento de um Estado policial que produziu uma cristalização da cultura.
A partir de 1850 o mundo assiste a uma radical modernização, onde o luxo emparelhava com o mau gosto dos novos-ricos. Paris se torna a cidade-luz de fachada, fruto de uma sociedade inescrupulosa. Paris volta a ser a capital do mundo, mas não das artes, e sim das distrações, das operetas, dos bailes, dos restaurantes, do prazer. É reconstruída. A vida cultural é dominada por produções fáceis e agradáveis. A literatura vira passatempo, a arquitetura se transforma em decoração, a música em algo cativante, o teatro na “peça bem feita”. O mau gosto dita moda[xxxviii].
Assim, o naturalismo deste período é arte de uma pequena minoria de artistas e de público. É objeto de ataque por todos os grupos influentes, como a Academia, a Universidade e a crítica. E esses ataques vão-se acentuando à medida que o naturalismo “realista” vai virando “naturalista”.
O naturalismo busca a verdade psicológica no princípio da causalidade. Na pintura, inicia-se como um movimento do proletariado artístico e seu mestre é Coubert, respeitado por ser proletário, democrata, revolucionário ou político. O naturalismo compraz-se com a fealdade, a vulgaridade, pelo reles, pelo prosaico da vida do campo. A pintura jornalística.
A literatura naturalista começa por só interessar aos connoisseurs, e os escritores passam a admitir a falta de êxito como coisa natural, o êxito como critério de inferioridade artística, e o ser incompreendido por sua época como pré-requisito da imortalidade. Os naturalistas são atacados por todos os lados: Flaubert, os irmãos Goncourt e Baudelaire são processados.
Mas o processo e o escândalo de Madame Bovary (l857) decidem a vitória do naturalismo, pois o público passou a ler Flaubert, mais movido por interesse outros do que artísticos.
Saint-Beuve reconhece Madame Bovary como a vitória dos anatomistas. Os naturalistas procuram a impessoalidade e imparcialidade no romance, a não-interferência do autor. E Flaubert era um burguês que representava a autocrítica da burguesia — a fonte de inspiração de Flaubert é o seu horror pelo burguês. Mas era um burguês metediço e disciplinado, lutando pela arte, na glorificação da técnica moderna.
A literatura de Flaubert era um tour de force, pois ele escrevia com muita dificuldade, sem a inspiração romântica.
O naturalismo da geração de 1830 realiza um corte com o passado literário, pois o século começa aí, e a literatura de Balzac e Stendhal já problematiza nossa sociedade. Esta literatura evolui até Proust como crítica da burguesia, da classe média. É a época da luta dos trabalhadores e do socialismo, como também é época do pleno racionalismo econômico capitalista. O liberalismo ganhara terreno a caminho da democracia moderna, mas o Poder estava legitimado agora, pelos banqueiros. Em 1832 houve o 1o. levante operário, agora classe social solidária e nascida nas grandes fábricas. Assiste-se a uma grande politização da vida e da literatura. Aparecem os grandes jornais: La.Presse passa a sustentar-se com os anunciantes, e não com os assinantes, o que foi uma revolução: de 70 a 200 mil assinaturas. Aparece o folhetim. Contrata-se Balzac e Eugéne Sue, Alexandre Dumas (Os três mosqueteiros foi um sucesso). Fabrica-se literatura de massa. Democratiza-se tudo. A literatura passa a ser expressão da sociedade, intervencionista. George Sand, Eugéne Sue eram socialistas. Lamartine e Hugo se entusiasmam pelo povo. Dumas, Musset, Merimée e Balzac cortejam o socialismo[xxxix].
Entretanto, os conservadores asseguraram sua vitória sobre a causa popular. Provocam a “arte pela arte”, começam a desconfiar dos artistas. A partir daí, a burguesia começa a desconfiar dos artistas e intelectuais. Cria-se o mito de que o artista deve ficar acima da política.
A narrativa medieval era expansiva; a renascentista era concentrada; a naturalista era simplificada, para as massas. No séc. XVII o romance de aventura era subliteratura: A grande literatura reside em Corneille, Racine e Moliére. No séc. XVIII, o romance ganha certo prestígio; é o romance picaresco e difuso de Voltaire, Defoe, Fielding. No mesmo século, o romance pré-romântico é de amor: Goethe, Werther.
Desse tema amoroso parte o princípio estrutural que culmina com Madame Bovary, o primeiro romance de amor sem amor, o primeiro romance de amor em que a personagem já não ama, já é vazia de sentimentos, já representa aquela sociedade sem alma que vivemos hoje. Se o romance romântico mostra o conflito do indivíduo com a sociedade (indivíduo que ainda sonha com o mundo aristocrático anterior), o romance a partir de Madame Bovary já revela um personagem adaptado, vencido, símbolo da sociedade capitalista, reduzido à animalidade dos impulsos sexuais, aos sentimentos mais levianos: Ema sonha com as riquezas da classe dominante e quer-se tornar amante dela.
Do sujeito transcendental de Kant passa-se para o sujeito social de Marx. O romance passa a ser “romance social”: Balzac, Stendhal, Flaubert, Dickens, Tolstoi e Dostoievski. Os escritores passam a críticos da sociedade. Balzac criticou duramente a estrutura econômica do seu tempo, ou melhor, de Paris de seu tempo (e tanto ensinou a Marx). Nunca antes a literatura teve como tema o sistema político, a consciência histórica do mundo. A luta de classes do século passado introduz-se na literatura, O homem virou história. O personagem só existe, agora, em relação com a sociedade. Os romancistas passam a “historiadores” modernos. Os romances estão cheios de personagens políticos, de banqueiros, de especuladores. O romancista é quase um jornalista. O lucro e o poder são os temas de Balzac. O dinheiro é a mola do novo mundo dos personagens. A virtude começava com a prosperidade. Descobre-se a estrutura dialética da história, o materialismo histórico, já que o capitalismo não esconde seu jogo, como o feudalismo (que se camuflava sob o véu de uma ideologia religiosa). O capitalismo é franco e claro, sabe o que quer e não engana a ninguém, é transparente. Daí Marx ter visto logo suas fendas e contradições, e ter visto que havia agora duas classes, uma sobre a outra, e que nunca o ideal de uma sociedade sem classes estava tão próximo, já que se poderia nivelar a sociedade por baixo (Marx enganara-se, pensamos, já que a História do século XX mostra que sempre se forma uma classe dominante). A par do socialismo, o anarquismo. E, dentro da sociedade capitalista, desenvolvia-se a democracia parlamentarista e liberal que ia transformar o próprio capitalismo.
Flaubert foi o escritor subjugado pela técnica. Ainda que, antes de Flaubert, os escritores sempre sentiram o duro trabalho do estilo, e com Flaubert que a dimensão deste trabalho alcança um nível de tormento indizível e expiatório, para o qual não conhece nenhuma compensação mágica (como a inspiração). A redação é lenta: Quatro páginas por semana, cinco dias para uma página, dois dias para escrever duas linhas. A escrita de Flaubert exigiu dele um adeus a vida, uma dedicação exclusiva ao texto, porque Flaubert tinha um problema irresolvível, que ele poderia prolongar ao infinito: Tinha correções intermináveis a fazer. Assim como Proust acrescenta indefinidamente, Flaubert, risca, rasura, recomeça sempre[xl].
Nas cartas o escritor se sente, por vezes, depois de rasurar interminavelmente o texto, num vazio atroz, pois muitas vezes consegue um período bem feito, mas que não flui naturalmente do período anterior e nem dá passagem espontânea ao período subseqüente.
O estilo acaba comprometendo totalmente o escritor, para o qual escrever é viver. “Para mim, um livro foi sempre uma maneira especial de viver”, diz Flaubert. Este sacrifício da vida modifica até certo ponto as concepções românticas tradicionais da arte de escrever, apresentada como o revestimento em geral das idéias e paixões do escritor. Ao contrário, agora escrever e um duro labor técnico.
Aos olhos de Flaubert desaparece a oposição fundo/forma. Para ele, escrever e pensar é uma coisa só, a escrita é um ser total. É uma influência da poesia, com seus metros fixos e difíceis para o poeta, para o domínio da prosa: A poesia estende para a prosa o espelho de suas injunções, o seu código estrito, que a prosa deve ultrapassar. A tarefa de escrever também é a técnica imposta para elaboração de um romance, os problemas da ordem, da disposição das partes. Flaubert não descura a narração (Flaubert tinha 260 páginas de preparativos de ação, exposição mais ou menos disfarçada de caracteres, de paisagens e de lugares)[xli]. O trabalho, portanto, é árduo e fastigioso. E este trabalho se refere, principalmente, às correções, que Barthes classifica em dois tipos: as do eixo vertical, que são as substituições de palavras; e as do eixo horizontal, que são as supressões ou acréscimos de sintomas. As primeiras são metáforas, evitam ecos, repetições. As segundas são metonímicas, aumentam ou diminuem o discurso, por catálise ou por elipse[xlii].
São três os tipos principais de correções: Substitutivas, diminutivas e aumentativas (permutação, censura ou expansão) A substituição e a elipse são limitadas, pois não se pode reduzir a frase indefinidamente, nem substituir uma palavra por qualquer outra. As correções aumentativas são, ao contrario, ilimitadas e podem multiplicar-se indefinidamente, mesmo que apenas por meio da digressão. A frase (e isso é o que interessa a Barthes) pode ir sendo acrescida interminavelmente de incisos e expansões, mesmo que a frase literária esteja regulada por modelos que lhe são próprios e pelos limites da memória humana. No ideal clássico era desaconselhável todo tipo de expansão: As expansões só aparecem, diz Barthes, em Rousseau e sobretudo em Stendhal, que desafiava o “estilo elegante”.
Se a retórica, com Dionísio de Halicarnaso e com o Anônimo do Tratado do Sublime, descobriu o estilo, Flaubert descobriu a existência de uma técnica e de uma metafísica de inigualável força que é a frase. Para ele, a frase é a um sé tempo uma unidade de estilo, de trabalho e de vida: Pode-se dizer que Flaubert passou a vida a fazer frases. Sua frase é uma coisa. Nela há o fascínio de uma finitude (como a de um verso): “Trabalhemos para concluir a frase”[xliii].
Pouco mais tarde, diz Barthes, um escritor viria a fazer da frase o local de uma demonstração poética e lingüística: Mallarmé baseia-se explicitamente na infinita possibilidade da expansão frástica, cuja liberdade, que a Flaubert parecia tão apavorante, torna-se em Mallarme o sentido mesmo do livro por vir. A partir de Um Lance de dados, o guia do escritor não será mais o retórico, mas o lingüística, que trará à luz não as figuras dos discurso mas as categorias da língua[xliv].
Flaubert inaugura a literatura retraída, fechada no seu mundo de frases, encastelada na sua recusa e na sua negação. Flaubert abre a literatura para a técnica literária: A técnica invade a literatura.
Ao mesmo tempo, os realistas-naturalistas (do tipo Zola), começam a fazer a investigação científica dentro da literatura. A burguesia continua a ser duramente retratada. A arte vinga-se do mau gosto dominante: os grandes artistas não são os que maiores êxitos tem.
Mas Zola e Aluísio começam a atacar tudo: a burguesia e o proletariado, pois o homem não mais é visto socialmente, mas como um animal a estudar. Este fato livra os escritores de serem acusados de socialismo, pois também os vícios dos “pobres” vêm à tona. A técnica e a ciência haviam invadido o horizonte da literatura.
As classes em ascensão no século XIX têm confiança no futuro e por isso são otimistas, apesar da miséria em que possam estar vivendo, ao passo que a burguesia dominante as vezes começa a sofrer um sentimento da iminência de sua própria destruição, apesar da glória de sua força.
É o que começa a aparecer no romance realista-naturalista, considerado investigação científica. Para Zola, como para a ideologia científica e socialista, o homem é um ser cujas qualidades são condicionadas pela lei hereditariedade (isto é, da propriedade privada) e do ambiente em que vive. E os romances passam a ter um certo valor teórico, embora o naturalismo apresente uma visão de certo modo romântica da realidade, uma visão exageradamente artística.
Mas, ao lado do Flaubert e Baudelaire, no gosto do público predominava o mais completo mau gosto. A excelência foi substituída pela aparência, a dificuldade pela facilidade, acessibilidade.
A arte mais atingida pelo mau gosto foi a do teatro, por ser arte pública por excelência. Os dramaturgos que fizeram sucesso encarnaram a ideologia burguesa, de que o “público tem sempre razão”. O desenvolvimento do público foi grande, devido às estradas de ferro. É a época do apogeu da opereta. O público fez desaparecer o sujeito. A partir de então o sujeito está definitivamente dissolvido na massa. Do público burguês, de mau gosto, do séc. XIX, para o público da TV do séc. XX, basta um passo. E, carente de público, a “grande literatura” cada vez mais se isola na produção do fantástico, do trágico, do assimétrico, da experiência do isolamento. Proust já revela este estado de coisa. O Ulisses de Joyce, o processo de Kafka. A época literária parece definitivamente passada. E o espaço do “nouveau roman”. Alguns, mais sagazes, comercializam-se no romance-reportagem. Outros, dissidentes, transferem-se para o cinema e televisão, onde se encontra o canal de comunicação com o novo público. Os maiores escritores do século, ou já não têm público, ou tiveram a formação de um novo público pela força de uma superatividade criadora neste sentido. Cada um, a seu modo, teve de resolver o seu século, o século XX.
A luta literária é uma luta contra a alienação universal. Esta alienação se encontra principalmente no fato de que os personagens que desempenham os mais altos cargos de decisão dos Estados não são sensíveis à arte. Esta alienação é o fato de o homem moderno estar voluntariamente tornando-se um autônomo, com nervos adormecidos.
Assim, tanto as “elites” modernas, quanto as massas, têm-se mostrado insensíveis aos valores da arte, isto é, da beleza, isto é, do homem. As sociedades modernas não são orientadas para e pela arte, nem são sensibilizadas pelos “poetas de corte”, ou pelos humanistas do Renascimento.
Arrisca-se a literatura a ver-se transformada num produto industrial, numa mercadoria que se consome e que serve, mesmo à revelia, de veículo da “classe” dominante, da classe tecnológica. Pois a literatura não consegue sobreviver fora das estruturas de poder da sociedade, o escritor necessita dos meios de comunicação da massa para ter voz. Por isso, os artistas têm utilizado a televisão (como Ingmar Bergman) e outros canais de comunicação de massa. Pois a sociedade de organização encontrou um lugar definido para a arte, como produto industrial, e isso é uma suprema forma de dominação. A arte arrisca a deixar de ser inútil, na sociedade que vive do útil.
O problema é encontrar um espaço literário, de onde a literatura continue a fazer a crítica da ideologia dominante, fora do âmbito do Estado. Existirá este espaço? Poderá a literatura deixar de ser “bem cultural”, com fins comerciais, ao nível dos outros produtos, como os produtos eletrônicos? Tendo perdido a sua “aura”, há mais de um século, existirá a Literatura?
Assim, a literatura é hoje radical negação.
Luta o texto literário contra esta descaracterização humana na sociedade tecnocrática. Luta pelo homem, que não optou por viver num mundo assustado pelo terror nuclear. Luta com uma arma antiga: a força da argumentação do discurso, a força do texto. Luta pela liberdade, contra a organização da técnica, contra os riscos da técnica, contra as bombas da técnica. Contra as “democracias de massa” desinformadas. Sua luta é um resíduo considerado “conservador”, pois a modernidade está imbuída da tecnologia-científica. O discurso é uma forma conservadora da História.
A literatura de hoje revela esta contra-ideologia. O poema revela esta luta ideológica, e a linguagem do homem no mundo tecnológico esta na linguagem e ideologia do poema.
A literatura, como todas as artes, tornou-se autônoma. Mas essa autonomia de arte, essa liberdade, e sempre considerada a liberdade num domínio particular, isto é, liberdade dentro do espaço da própria arte. Isto cria uma contradição com o estado de não-liberdade no todo social.
O escritor tem obtido do Estado apenas a permissão de fazer analise situacional, já que sua ação se perde por falta de força nos veículos de comunicação. As massas ainda estão surdas ao libelo da literatura. Só a elite intelectual a ouve, mas essa elite se ajusta a um padrão em que o protesto não interessa.
Portanto, a literatura se encontra nos limites dos meios de comunicação, que também se acham sob o controle do Poder do Estado de massa. A literatura se acha nos limites do silêncio, e “o silêncio é o máximo de concentração da voz” como disse Eduardo Portella.
O problema da literatura no mundo moderno não é o de saber qual é o seu papel, mas o de lutar por seu direito à existência. Não se trata de encontrar um lugar para a literatura, mas de lutar para que a literatura continue a fazer a crítica da ideologia tecnológica dominante. A função da arte é ser revolucionária: quando ela entra nos meios de produção industrial e nos museus, já não e revolucionaria, já está à serviço da dominação.
A literatura hoje luta para não transformar-se em “bem cultural”, com fins comerciais, ao nível de mercadorias que obedecem à lei da oferta e da procura, que entra no ciclo da produção-consumo.
Além disso, a arte de todos os tempos tem-se revelado importuna, revolucionária, porque o artista, na medida de sua força, sempre confronta o desconhecido, o novo, a nova vida, o novo mundo. O artista é o desbravador da ordem. E por isso o público antigo encontrava nos artistas os novos modelos culturais, a solução de seus problemas humanos.
Portanto, a literatura atesta as transformações da realidade. Ela é tradução da realidade, traduz o caos individual em que vivem os indivíduos, dentro da racionalização.
Procuramos descrever este mundo nas páginas anteriores, localizar o papel da arte nesta sociedade.
O papel da Literatura, um de seus papéis na História Literária, é criticar a ideologia tecnocientífica, afirmar a necessidade de transformação das estruturas existentes, uma atitude de inconformada e permanente denúncia de tudo.
A literatura luta para não assumir o seu papel de “lazer”, que a sociedade industrial lhe reserva: A literatura que passa a ser texto desprovido de saber e de validade científica. E o homem de letras recebe a indiferença do homem tecnológico, o escritor de literatura arrisca a ser hoje uma figura antiquada e ultrapassada, a figura do homem do passado, numa sociedade que só valoriza o “certo” e “produtivo” do saber racional.
Entretanto, na literatura se encontram as minorias “ecológicas” da cultura humana. A literatura é paralela à luta das minorias contra uma maioria ideológica, contra o progresso em que se encontra uma forte raiz de violência e de autodestruição. Não sabemos hoje, por um processo ideológico, que somos uma sociedade escrava do sucesso. Falta-nos um novo humanismo, falta-nos um projeto humano. Somos uma massa de trabalhadores da violência, do progresso de um dado estado de coisas desumanas. Somos a multidão dos apressados trabalhadores do invisível Poder da tecnociência;
Por isso, a tarefa a que a literatura de hoje se propõe é denunciar essa alienação do homem dos valores realmente humanos, porque a “arte é dimensão fundadora do homem”, disse Eduardo Portella[xlv].
Resta pois a informação estética, a serviço do homem. Os escritores têm lutado para mostrar que este não é o melhor dos mundos, desde o Candido de Voltaire. E a velha função da literatura era educar o espírito.
O papel da literatura é criticar esta ideologia encarnada pela tecnologia-científica, pelo progresso tecnológico, pelos Sistemas computacionais. A luta pela necessidade de transformar a sociedade, agora, traduz-se como luta para humanizar o estado tecnológico, luta esta que se configura como necessidade de os humanismos não perderem a total influência nas decisões, para que o homem não se torne um instrumento da máquina dos superestados e dos impérios.
No acontecer histórico, ocorrem quase inexplicavelmente os fatos mais inesperados, e por isso a literatura tem como fonte a perplexidade, inexplicável dúvida radical.
De longe, da América Latina, os escritores assistiram, no meio da pobreza ambiente, ao sofisticado cenário internacional. Endividados, impossibilitados, desesperançosos de progresso, voltam-se para o que de mais radical possuem: voltam-se para o Sertão. O sertão é o nosso mundo às avessas de tudo. Aqui é o nosso reino, o nosso corpo.









[i] ARENDT, H. (1981), p.23.
[ii] Ibidem p.28.
[iii] Ibidem p.32.
[iv] Ibidem p.35.
[v] Ibidem p.36.
[vi] TOYNBEE, A. (1963), p.55.
[vii] PETERS, F.E. (1977), p.163.
[viii] CASTRO, A. de (1982a), p.56.
[ix] PORTELLA, E. (1974), p.152.
[x] HEIDEGGER, N. (1969), p.74.
[xi] DREITZEL, H. (1975), p.104-105.
[xii] Ibidem p.105.
[xiii] ADORNO, T. (1974), p187.
[xiv] HABERMAS, J. (1975), p.49.
[xv] DREITZEL, H. (1975), p.103.
[xvi] MARCUSE, H. (1978), p.61.
[xvii] Ibidem p.47.
[xviii] Ibidem p.52.
[xix] HABERMAS, J. (1980a), p.169.
[xx] Ibidem p.169.
[xxi] ARENDT, H. (1971), p.15.
[xxii] ADORNO, T. (1982), p187.
[xxiii] Ibidem p.187.
[xxiv] HEGEL, G.W.F. (1964), p.11.
[xxv] Ibidem p.26.
[xxvi] Ibidem p.38.
[xxvii] ADORNO, T. (1982), p11.
[xxviii] Ibidem p.15.
[xxix] HABERMAS, J. (1980a), p.169.
[xxx] BENJAMIN, W. (1980), p.93.
[xxxi] Ibidem p.99.
[xxxii] Ibidem p.101.
[xxxiii] Ibidem p.107.
[xxxiv] SYPHER, W. (1980), p.22.
[xxxv] Ibidem p.24.
[xxxvi] Ibidem p.32-33.
[xxxvii] HAUSER, A. (1972), p.939.
[xxxviii] Ibidem p.940.
[xxxix] Ibidem p.881.
[xl] BARTHES, R. (1974), p.68.
[xli] Ibidem p.70.
[xlii] Ibidem p.70-71.
[xliii] Ibidem p.75.
[xliv] Ibidem p.76.
[xlv] PORTELLA, E. (1974), p.30.

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