2.3.2.3 - Recuperação trágica.
Diadorim se revolta contra a morte de seu
pai, pois a morte de seu pai é sua morte. Nele, o trágico é sua
insubstancialidade. Esse nada se revolta.
Lesky, abordando a questão trágica das
epopéias homéricas, observa que no centro de cada uma ergue-se sempre o herói
cheio de glória diante do fundo escuro da morte certa para levá-lo ao nada[i],
complementado pela oposição do fato de que o homem é colocado frente aos
deuses. Esta luta, se para os deuses não passa de uma brincadeira, para os
homens é fatal, pois nela arriscam tudo o que t~m e o que perderão na morte
amarga. Zeus observa Heitor possuído de orgulho e o lamenta, concedendo-lhe
ainda uma hora de exaltação: Homero foi o pai da tragédia.
Os gregos, que criaram a grande arte
trágica, não desenvolveram nenhuma teoria do trágico. O trágico seria, para
Aristóteles, o terrível, o estarrecedor, o sanguinário - e só. Não encontramos
o trágico provido do peso de cosmovisão com que aparece nos nossos dias, pois
qualquer tentativa de definir o trágico hoje começa com as palavras de Goethe,
de 1824: “Todo trágico se baseia numa contradição irremediável”. Tal condição
se baseia ou no mundo dos deuses, ou nos mundos dos deuses e dos homens, ou só
no mundo dos homens.
O primeiro requisito trágico, diz Lesky, é
a “dignidade da queda”[ii].
Somente no século passado a tragédia burguesa pós fim à idéia de que os protagonistas
das tragédias tinham de ser reis ou heróis. Aqui, o que temos de considerar
como trágico deve significar a queda de um mundo de ilusões, de segurança e
felicidade para o abismo do fluxo do real, em que a desgraça é iniludível.
Experimentamos o trágico, desta forma, nas camadas mais profundas do nosso ser,
no grande drama da vulnerabilidade da existência humana moderna.
Algumas tragédias áticas terminam com um
final feliz e com uma reconciliação. Assim há: l°) uma visão cerradamente
trágica do mundo (tragédias que terminam com a totalidade do mundo), e 2°) um
mero conflito trágico (onde a tragédia acaba com o total aniquilamento dos
seres envolvidos) , e 3°) a situação trágica (quando a tragédia acaba com uma
conciliação)[iii].
Nietzsche tinha a convicção de que o
aburguesamento do sentimento da vida, a atrofia de nossa imaginação, pelo
racionalismo, nos vedou o acesso a uma compreensão verdadeiramente trágica do
mundo.
Modernamente, tornou-se assunto de
discussão saber se o trágico pressupõe um mundo, em última análise, carente de
sentido, ou se é possível conciliá-lo com a suposição de uma ordem superior,
para além de todo conflito, e de todo sofrimento, ou se, se exige mesmo tal
ordem. Trata-se de saber se a tragédia aponta para um nada absurdo ou para um
mundo transcendente de ordem superior. É o caso do cristianismo. Sem duvida, em
circunstancia alguma é possível coadunar uma visão cerradamente trágica do
mundo com a cristã, sendo ambas diametralmente opostas. Em compensação, a
possibilidade da situação trágica se desenvolver dentro do mundo cristão se dá
como em qualquer outro mundo.
Outro problema é o da “culpa trágica”. São
os erros com duração legendária, que esclarecem sua gênese de maneira
convincente, a partir de determinadas situações no domínio da cosmovisão. A
culpa trágica seria também uma culpa moral, e no caso de Édipo se fala de como
uma mesquinha e minuciosa busca de culpa moral entravou, durante muito tempo, o
caminho da compreensão desta tragédia.
Aristóteles assinala que a plasmação do
trágico surge quando a queda de uma posição de prestígio se dá por uma “falha”: Mas essa falha não é uma
falha moral, pois o homem que é vítima desta queda trágica não pode ser,
segundo Aristóteles, nem moralmente perfeito nem reprovável — daí resulta a exigência
do bastante citado caráter “médio”, um conceito que sé com muito cuidado se
aplica às personagens áticas.
Esta argumentação leva a outro ponto:
A de que a falha, como erro sem culpa, se contrapõe ao crime moralmente
condenável. Devemos supor, seguindo o pensamento antigo, que aceitar uma culpa
que subjetivamente não é imutável e que no entanto objetivamente existe com
toda a gravidade, é odioso aos homens e aos deuses, podendo emprestar um país
inteiro.
Dentro da tragédia grega esta culpa
aparece como elemento motor, e temático. Este tema, esta culpa moral parece,
para o autor trágico, um dado real com que tem que contar.
Esta possibilidade de “falha”, de que fala
Aristóteles, é dada junto com a existência do homem e, assim, um verdadeiro
germe de uma teoria do trágico.
Diz Hegel que o verdadeiro conteúdo da
ação trágica e fornecido por forças universais que regem a vontade humana: o
amor carnal, paternal e maternal, filial, fraternal e portanto, o Direito
Natural. Além disto, os interesses da vida civil, o patriotismo, a autoridade
dos reis, a vida religiosa (sob a forma de uma intervenção ativa)[iv].
As estátuas e imagens dos deuses antigos explicam os caracteres trágicos do
teatro grego, pois o divino constitui o verdadeiro tema da tragédia primitiva —
a substância divina da vontade e da ação é o elemento moral. As forças morais
são diferentes tanto quanto ao conteúdo, como quanto as manifestações individuais.
Quando a ação individual, visando realizar
um fim ou impor a superioridade de um car5ter, adota uma atitude de isolamento
como a de Diadorim, levanta contra si a paixão oposta e assim se geram
inevitáveis conflitos. Em princípio, o trágico consiste em que ambas as partes
opostas tem igualmente razão, o que as torna igualmente culpadas[v].
Os deuses só realizam sua missão quando permanecem no mundo das representações
religiosas com calma e tranqüilidade. Mas quando entram no âmbito da vida,
particularizando-se :e individuando-se, opondo-se como mútuas formas opostas da
paixão humana individuante — tornam-se culpados e atentam contra o Direito.
O que o homem deve temer, diz Hegel, é a
força moral que é uma determinação da própria razão livre[vi].
Entretanto, para que uma figura trágica desperte em nós uma simpatia por sua
desgraça, é necessário que seja em si mesma de forte caráter e que possua um
verdadeiro conteúdo como Diadorim.
Hegel, ao abordar a arte dramática do
mundo moderno, começa por assinalar as principais diferenças que a distinguem
da tragédia ática
A tragédia antiga, pelo fato de sua elevação
plástica, mostra-se ainda “exclusiva” porque evidencia o poder das forças
morais e o poder das necessidades, sem procurar, diz ele, aprofundar a
subjetividade e a individualidade dos personagens. Só a comédia antiga, que tem
uma plasticidade inversa, analisa a subjetividade no “livre desenvolvimento da
perversidade que se destrói a si mesma”[vii].
A tragédia moderna, pelo contrário,
fundamenta-se no “principio da subjetividade” como elemento propulsor do
trágico.
A interioridade subjetiva do caráter, e não uma
simples personificação clássica das forças morais, que constitui o seu objeto e
conteúdo, é que faz com que tanto a explosão dos conflitos como o desenlace
dependem de conjeturas acidentais[viii].
Diz Hegel que, embora na trágica romântica
seja a subjetividade dos sofrimentos e das
paixões, no sentido próprio da palavra, que ocupa o lugar principal, não deixa
de ser verdade que o homem, nas suas ações, não poderia fazer abstração da base
concreta e sólida formada pela Família, pelo Estado, pela Igreja etc[ix].
Para Nietzsche, a evolução da tragédia
resulta do seu duplo caráter: O espírito apolíneo e o espírito dionisíaco.
As artes plásticas se referem a Apolo,
deus da forma. As artes sem forma, ou musicais, são artes dionisíacas. Graças a
um milagre metafísico, os dois instintos se encontraram e produziram uma obra
superior, ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca: a tragédia grega.
Nietzsche parte do sonho como fenômeno
psicológico para estabelecer os fundamentos de sua estética. A arte do poeta é
dizer a arte do sonho.
A beleza do mundo dos sonhos é para nós a
condição prévia de todas as artes plásticas e também uma parte essencial da
poesia.
Entretanto, o sonho nos deixa a impressão
de não ser mais do que uma aparência. Todo homem dotado de espírito filosófico
pressente que, por trás da realidade que se descortina aos sentidos, se
encontra uma “outra” muito diferente, sendo que a primeira não passa de uma
aparição da segunda.
O filósofo percebe a realidade como um
puro fantasma, como uma imagem de sonho.
Para Nietzsche, o coro seria como “a
muralha humana” de proteção à tragédia para que ela decorresse íntegra,
separada do mundo real, salvaguardando assim a sua integridade, o seu domínio
ideal, sua liberdade poética. Os gregos construíram, para este coro, uma ordem
natural e com a ajuda de tal fundamento se construiu a tragédia.
A consolação metafísica que aparece na
figura do coro é o pensamento
de que a vida, no meio dos fatos, “a despeito da variabilidade das aparências,
permanece imperturbavelmente poderosa e cheia de alegria”[x].
Todas as personagens célebres da tragédia
grega não foram senão “mascaras do heréi original, Dionísos”[xi].
A tragédia, diz mais Nietzsche, é a “idéia
fundamental da unidade de todos os existentes, a consideração da
individualidade como causa primeira do mal”[xii].
Mas se Sócrates olhasse a tragédia da
forma por que a olha Nietzsche, não poderia ver senão algo de irracional,
causas que não produziam efeitos e efeitos que não
procediam de causas; um tal conjunto de disparates e de confusões, que haveria
de escandalizar os espíritos refletidos e perturbar perigosamente as almas
ardentes e sensíveis[xiii].
Para Nietzsche, a ciência é o mais ilustre
antagonista da concepção trágica do mundo, a ciência é otimista em essência —
daí o renascimento da tragédia no
sentido que lhe dá, pois a ciência perde o passo nos rumos sempre ousados e
novos da imprevisibilidade do real.
A “cultura de ópera”, diz, é a
maneira mais nítida de caracterizar a atitude íntima desta cultura em que se
revela o trágico.
1
A ópera não nos oferece, pois, a expressão desta
dor elegíaca que sempre uma perda irreparável nos causa, mas antes a serenidade
de uma perpetua recuperação, o gozo fácil de uma realidade idílica que, pelo
menos, podemos a cada instante imaginar real[xiv].
O renascimento da tragédia
faz renascer também o espectador estético, que havia sido
substituído até então, nos teatros, por uma estranha personagem, de pretensões
semi-sérias e semimorais, o chamado “crítico”.
Se nos fosse possível imaginar, diz o
Filósofo, a dissonância feita criatura humana, pois o homem é uma dissonância,
esta, para poder suportar a vida, teria a necessidade de uma admiráve1 ilusão
que lhe escondesse a sua verdadeira natureza, sob um véu de beleza. Esta é a
finalidade da arte apolínea. O nome de Apolo resume aqui essas ilusões sem
número da bela aparência que tornam, a cada instante, a existência digna de ser
vivida e nos incitam a vivê-la no instante seguinte. Sempre que as potências
dionisíacas as subvertem violentamente, é desejável que Apolo, envolvido em
nuvens, desça até nós, para curar a nossa embriaguez.
E a tragédia aparece nesta estrutura
antagônica de Apolo e Dionísos: um pouco de Riobaldo e um pouco de Diadorim.
Extraordinário protesto contra a
racionalidade do mundo tecnológico, Diadorim configura uma contradição naquele
mundo arcaico de grande sertão, e assim o vemos desde o dia em que mantivemos
um dialogo sobre o personagem com o próprio Guimarães Rosa, apresentado pelo
Acadêmico Afrânio Coutinho, na porta da Academia Brasileira de Letras em 1964.
Um dos mais polissêmicos e ambíguos
personagenS da literatura brasileira, a par de Capitu, para chegar-se a uma
leitura hermenêutica de Diadorim tem-se de passar pela discussão da
racionalidade burocrática moderna. Tal é um dos múltiplos significados do
personagem, assim como de seu narrador intradiegético, Riobaldo. O pacto de
Riobaldo com o Diabo, a maneira de integrar sua relação amorosa com Diadorim,
assim como a terceira margem do rio do conto roseano, revelam que a razão (a
sem-razão) 1iterária, na busca do primitivo da sociedade arcaica, busca salvar
os valores de redenção do homem destituído de alma que a sociedade industrial
programa.
Diadorim pertence aquela galeria de seres
ambíguos com que a literatura tem questionado o homem: Hamlet, Albertine. Por
exemplo, em Albertine, a confusão reside nas diferentes maneiras de ser (“Ela
era única, portanto inumerável”, diz o narrador). Logo que aparece, ainda
criança, assim a vê o narrador:
... mas, no dia seguinte àquela noite, como eu
tivesse acompanhado minha av5 ate o extremo do dique, em direção das
barrancas de Canapville, ao voltar, a esquina de uma das pequenas ruas que
desembocam transversalmente na praia, cruzamos com uma moça que, com a cabeça
baixa como um animal que fizesse entrar a contragosto no estábulo, e segurando
tacos de golfe, marchava diante de uma pessoa autoritária...[xv].
Ora, aí o personagem emite estranhos e
irracionais “sinais” de animalidade: “cabeça baixa”, “animal entrando a
contragosto no estábulo”, “tacos de golfe”, “conduzida por pessoa autoritária”,
assim como se tratasse de um cavalo, não de uma menina, semas esses que lhe dão
a força de uma irracionalidade, ao mesmo tempo em que lhe destacam uma enérgica
vitalidade.
Observe-se que Albertina é ambígua durante
toda a Recherche. Em dado momento,
consciente disto, diz o narrador: “Contudo, aquela era Albertine”[xvi].
Nunca se consegue apreender a figura “racional” de Albertine, assim como não se
tem nunca um retrato acabado de Capitu. Os personagens citados são, portanto,
exemplos de que a natureza humana de que trata a literatura é ambígua,
inesquematizável, e o contrário do que tem feito a tecnologia industrial para
padronizar o homem.
Na ambigüidade, própria do discurso
literário, reside, pois, o protesto que se encontra nas obras literárias contra
a burocratização do gosto do homem moderno. Estes seres, os personagens, também
se opõem à tendência totalizadora da tecnologia científica, porque a sua
compreensão nunca é totalizante, racional. A literatura luta, pois, pela
manutenção do mistério, pela existência do homem como soma de potencialidades,
possibilidades, não como entidade produzida, como numero na massa, cuja
consciência é formada pelos meios de comunicação de massa, cujo pensamento
crítico se resume em participar dos modernos mitos comunitários da “opinião
pública”.
Que Diadorim seja um personagem trágico
não parece haver dúvida. A ambigüidade de sua condição, sua direção para a
morte, sua posição definida para a vingança da morte de seu pai — tudo o leva a
um desfecho trágico.
Mesmo antes da morte de seu pai, a aptidão
deste personagem para situar-se numa condição em que “carece não ter medo” (em
que traduz o “viver é muito
perigoso” de Riobaldo) — aptidão de Diadorim para o exercício da libertação
emancipadora trágica transparece na sua figura e o endereça para a catástrofe
final.
Riobaldo amou a catástrofe. Diadorim,
emancipado de sua condição feminina, posto em condições de luta tal qual um
jagunço qualquer, independente em seu mistério e sua transformalidade, tem a
consciência de que a travessia do São Francisco teria de ser paga com a morte.
Em certas condições heróicas, a libertação
tem como preço a morte final, a morte necessária por esta mesma razão e
“causa”.
É certo que a morte é o fim natural de
todas as coisas. Entretanto, a morte trágica é a procurada, a
sabida. A morte de todos nós não é trágica, porque vivemos na inconsciência de
nossa condição mortal. A morte é, para nós, algo vago e indefinidamente adiado,
estamos como que narcotizados por um mecanismo de defesa psicológica do
fenômeno — sempre brutal — de nossa própria morte.
A morte consciente, a consciência da morte
pessoal é coletiva como catástrofe inconciliável é que passa ao nível do
trágico.
“Carece não ter medo” pode ser traduzido
como “carece morrer”. A inevitabilidade da morte se choca, catastroficamente,
com nossa natural sede de existência, com nossa ansiedade de existir, de não
morrer. Essa ansiedade de não morrer, essa ansiedade de existir parece derivar
da consciência subjacente de que não somos nada, de que somos “um vazio habitável”
como escreveu Bhartes.
Assim, a morte de Joca Ramiro aparece
como algo “necessário”, algo esperado, graças ao caráter de fatalidade do jovem
Diadorim, posto em situação de transgressão do código. Somos prisioneiros
dentro de um sistema que nos mesmos fabricamos. A emancipação é um ato trágico
(ou cómico). Diadorim sabe que sua condição “anormal” de mulher travestida de
jagunço situa-se fora daquela linha que caracteriza a condição humana. Sua
paixão e sua queda.
Quando Diadorim apaixona-se por
Riobaldo (e o leva, na sua paixão, para a outra margem: A margem da
transmarginalidade), talvez não saiba que põe em risco a totalidade de sua
constituição, programada “tecnologicamente” e artificialmente por seu pai. Na
sua constituição “tecnológica” não estava previsto o encontro com Riobaldo, nem
o amor.
Tal encontro de Diadorim com Riobaldo
coloca a contradição de dois destinos inconciliáveis, o encontro de duas
forças: A transnormalidade encontra-se com a normalidade.
Sabe-se que a tragédia não,
necessariamente, precisa ter um desfecho para a morte. Muitas das tragédias
clássicas, como já dissemos, terminam com um certo final “solucionado”.
Encontram algumas um trago de conciliação, que não a morte, o aniquilamento
total, final, de todos os seus elementos antagônicos. Os heróis podem, ao fim,
encontrar uma saída — que não a morte — para a grave crise, para o conflito
que, em certo ponto, parecia irremediavelmente sem solução, ou para cuja
solução seria necessária a destruição mútua dos interesses conflitantes.
Às vezes, a “saída” emerge da própria
condição impermanente, mutável, insatisfatória e impessoal do núcleo das forças
combatentes. Quando passa o período crítico e agudo em que as coisas parecem
integralmente sem solução, quando muda o eixo do mundo, por força de sua
própria natureza em permanente fluxo de mudanças, a “saída” desponta por aí, de
dentro da natureza mesma do jogo trágico, de dentro da “crise”.
Não se trata, é certo e bom que não se
esqueça disto, de uma saída propriamente dita. O trágico não foi alterado. O
trágico concluiu o seu percurso e desenvolveu todas as suas potencialidades, o
trágico castigou os homens até o fim de sua sede — só que o herói não morre, o
herói sobrevive, não é o mesmo, sai dali integralmente castigado, experimentou
até o esgotamento todas as fases daquela prova, sai de certa maneira
“purificado” pelo fogo do sacrifício que lhe ardeu todos os níveis de suas
entranhas, sai muitas vezes com aquela sabedoria e humildade que nascem do solo
infernal da purgação de sua máxima culpa: a de ter, em dado momento, ousado
emancipar-se de sua condição-limite, ousado avançar além dos muros do jardim do
éden, ousado sobressair além de si mesmo, desarmado e desautorizado pelos terríveis
deuses. Ousado Desobeceder.
O trágico, portanto, é algumas vezes o
herói que despreza a proteção e permissão divina, que avança sozinho para o
desconhecido, que tenta a libertação sem o preparo anterior, sem a alimentação
previa, sem a condescendência divina e sem a humildade necessária, numa
afirmação de um “eu” pequeno e humano desobedecendo às grandes potestades. O
trágico é a culpa.
Riobaldo não morreu. Riobaldo não morreu,
casou-se,prosperou, aposentou-se, colocou-se na condição de entidade que
recorda as emoções com certa distância épica, com certa emoção lírica e com
certa tensão dramática.
Riobaldo não morreu. Não morreu? Como
podemos afirmar que Riobaldo menino e Riobaldo Tatarana não morreram? Como ver,
no Riobaldo narrador assentado na memória, o Tatarana apaixonado, vivo na
narrativa do Riobaldo narrador?
Grande
Sertão: Veredas é visto aqui como
resposta cultural às razões pragmáticas do Estado Científico regido pela necessidade. Diadorim é síntese da
contradição irracional que esta necessidade.
produz. “A terceira margem do rio”, o Pai, é um texto esclarecedor de Diadorim, como chave de compreensão. Grande Sertão: Veredas é uma “auto-reflexão irracional”[xvii],
como disse Guimarães Rosa, pois a razão “é a faca com a qual o homem ainda se
matará um dia”[xviii].
Diadorim é a negação da realidade, na direção da Terceira Opção (entre
capitalismo e socialismo), na direção da Terceira Margem, como promotora da
autoconsciência política do Terceiro Mundo.
2.3.2.4 - Recurso à Terceira Margem.
O mesmo problema de subjetividade aparece
no Pai de A terceira margem do rio.
O Pai, com seu viver misterioso, derrama em torno de si, no ambiente
daquela sociedade, uma espécie de domínio da subjetividade. O Poder do Pai,
ali, é uma figura avessa de imprevisto. O Pai é uma divergência de sentido. A racionalidade fica
definitivamente, ali, quebrada. A razão pergunta: Quem é? Que é? Ao esforço
dessas interrogações da razão, o pai responde com a idealização da desrazão.
A razão não segue a trilha aberta pelo
Pai. No lugar do Pai (ali no Meio), não chega a correção dos poderes
constitui:dos: o Pai é o próprio poder da ausência de razão. A saída do Pai é uma
espécie de crime contra o Estado. Ali não o atormenta a consciência da
impunidade, da violação de todos os direitos num só: a Lei do Pai, que
personifica o próprio Poder de Estado, já que o pai é o núcleo da sociedade
burguesa, o representante do Poder, é o Poder miniaturizado. O Pai ali fica,
pois, no anonimato de sua culpa máxima. Aquela margem, a terceira, é o espaço
do interdito à razão, um vácuo de subjetividade, um hiato no programa, um
parêntese no código. Pois a Terceira Margem não é loucura: A loucura está
codificada. A loucura seria uma explicação, uma razão explicativa. O Pai não
deixou, ali, nenhum espaço explicativo. A Terceira Margem é um vasto vazio
prodigioso, o reino da liberdade, o tiro na memória do programa. Naquela
imprecisão, em que se entredisseminara, o Pai acelera a destruição da razão.
Sua saída patenteia o tumulto revolucionáriO máximo, o supremo direito de greve
ao certo e ao lógico, o desencontrado domínio do desvio da norma. Ali, no seu
reino libertário, rompe com o social, neutralizando os signos familiares. É um
calar da voz da verdade certa, lançando um silêncio sobre todos a quem põe em
depressão. O Pai prolonga, no ritmo maldito de seu viver, um exílio
insuportável de todos, inadmissível: o exílio de Pai é o exílio de origem, de
ordem, de razão.
Assim, quando o Pai retorna, como com
notas de um estranho clarim do absurdo, os semas lógicos se precipitam em
desordem, os signos saem de todos os lugares do discurso para esmagar a ordem
restabelecida pelo filho.
O Filho restabelecerá a razão, a ordem,
naturalizando a saída do Pai. Pretende o Filho, substituindo o Pai,
racionalizar o seu discurso. Todo o percurso do Filho se encaminha para
naturalizar a saída do Pai. Porém mesmo no fim o fio da razão é cortado, pois o
Pai, ao voltar, corta o discurso do Filho (representante da razão social). Pois
o Pai é a vingança suprema.
A saída do Pai não é uma fuga da realidade,
mas uma destruição da razão da realidade, uma destruição do aburguesamento da
realidade. Caro, mas necessário. A Fala do Pai é a falta, que contagia
tudo de carência e de medo. O Pai, no seu esconderijo, provoca a ruína da
sociedade, aqui simbolizada pela família “burguesa” da beira do rio. Abate o
social com sua indiferença, com seu errar que não teme um juízo, sem dar
explicação, na cumplicidade muda da face das águas.
Sua liberdade é, portanto, um crime de
segurança social.
O que se espera e a “cura” do Pai, durante
todo o conto. Com um breve conto de poucas páginas, Guimarães Rosa matou o
totalitarismo do todo, o autoritarismo da organização e do planejamento. E não
foi uma solução romântica, mas uma revolução fantástica, mas o acontecimento do
novo, do imprevisto e incodificável, inaburguesáve1, irracionalizável. Revolucionário,
não-romântico, achou ele a única arma disponível a um ataque a razão: a ausência
impossível, a inação do impensável.
Atirando-se fora do tempo, insiste o
Pai, com força heróica num grave corte na ordem estabelecida, no desmanchar da
História perplexa. Na disciplina de seu especial ofício órfico, na sua dança,
na evolução que realiza em planos sucessivos de sua coreografia de ir-e-vir,
sem esperar um fim.
Suas aparições, momentâneas, estão cheias
de Poder Revolucionário, são aparições cheias de brilho e de força.
Miserável e glorioso, no seu engenho
aquático, ele desenrosca a máquina do tempo: “o que é, é saudade”, diz
Riobaldo. No seu universo de recusa, sua “viagem” deixa numerosos estragos: do
filho esta a voz social do “que vão pensar?”. Brotam explicações, justificações
(lepra, loucura), hipóteses (como na ciência)
Pois o Pai é um Mito fundamental: o Mito do Poder controlador de tudo. Sua
saída abre o avesso do controle. A tristeza das vozes do discurso revelam o
certo tornado incerto, a tradição moderna que aprisiona tudo, que condiciona
tudo, que nada deixa em liberdade, incontrolável.
O
significante é o pai-canoa, que se desloca, no seu desígnio funesto, violando,
entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam os membros
sociais. A complementariedade de substituir o pai, por parte do filho, tem o
patronado de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas,
sociológicas e históricas. O rio dá, à paternidade, um novo sentido: O pai
mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as
vozes?). Os sujeitos (pai-filho) deveriam se revezar, um sendo substituído pelo
outro. Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante
pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta
roubada”) . Ia para o rio: Ir é dolo. A matéria social não quer que
ninguém vá, ousadia sair para nova dimensão. Os problemas se imbricam, na
procura dos fins de restituição do pai, a sua condição paterna. O pai deve ser
reconduzido, ao seu lugar-canoa-com-a-mae (canoa fálica), pois o filho se sente
culpado por ter (edipianamente) desejado a morte do pai, seu afastamento da
mãe, seu deslocamento edipiano, com sua fálica (Lacan) canoa. O pai se afasta
com sua fala, isto é, com sua canoa. A canoa é a transposição da fala do pai.
Quando o pai manda fazer a canoa, ele está erigindo um monumento, um Falo
(transposição de sua fala, de seu silêncio, de sua falta), emblema daquilo que
se retira da mãe (para o sêmen das águas). A fala nadará, de ora em diante, no
grau de feminidade pura (a água é feminina). Para sempre — mas neutralizada
pela horizontalidade em que se deita — a fala desaparece na semiose pura da
liquidez aquosa da mulher-mãe-água. A fala retorna a um estado pré-uterino, o
estágio do espelho do rio humoral e placentário. A canoa e o objeto perdido, ao
qual se pede, e perde, esse dolo (fálico). Um excesso seria restringir a fábula
ao uso da dimensionalidade interdita do rio, apenas. O uso, é o uso da fala
familiar, que se aparta da casa, se afasta, e se cassa. Ausentando-se com sua
canoa, o pai resolve retirar do núcleo familiar o dom da fala, que se sustenta
na ordem simbólica da civilização.., escrita. Mas a retirada se dá tardia (a
ordem simbólica já está instaurada no narrador filial) e assim, o que se
lastima saudosamente é a perda da origem da fala, tardia mas castrante (a fala
sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida) . Na brecha do rio, ali se
inscreve a escrita da Fenda, escrita clandestina, escrita esquecida, de seu
miolo, de sua semente. Esta complexidade da verdade do texto não se simplifica
amputando os múltiplos membros da medusa (crescem outros...). A complexidade da
verdade não promana dos resultados da interpretação (que só faz levantar o
pano), não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, ou
melhor, confusos.
Assim, o rio tem a dimensão da linguagem
que vai aparecendo (essa leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos
teóricos vão ocorrendo), a saber, a linha discreta é segmentada do fluxo do
inconsciente, que é o discurso
das vozes, que vêm do rio.
O pai habilita o filho, empresta a sua foz e o seu discurso, na cadeia significante do
jogo do ir-e-vir da canoa paterna... Seu lugar levanta incidências imaginárias,
que a leitura vai registrando, à medida que lê.
A Terceira Margem do rio é a dimensão
insuspeitada da liberação e dos traços dos limites, onde se marcam os passos
finais de tudo aquilo que é como deve ser. São os valores e as imagens que
sobrevivem, em todo espírito que se sente vizinho daquela marca, daquele
paraíso perdido, dessa figura insistente de que há um círculo, um circuito
sagrado além das nossas próprias possibilidades, que há uma salvação e uma
estrada. É fenômeno do rito, do excluído e do sagrado.
Mas é, também, a Terceira margem, o lugar da Nau dos Loucos, da nau
louca da loucura, estranho barco que desliza na História da loucura de
Michel Foucault - STULTIFERA NAVIS. É, ao mesmo tempo, a nau dos loucos, a nau
dos príncipes, a nau das batalhas, a nau da virtude, pois, a História da
loucura na idade clássica, ou História
da loucura não é, simplesmente e apenas, uma história da loucura, mas uma
louca história. Loucura, História Louca, assim se dissemina a loucura do rio,
onde escorrega. Brandamente.
Os loucos eram freqüentemente confiados,
desde 1300, a barqueiros para se “livrar a cidade”. Confiar o louco a um
barqueiro, que segue para longe, é ter a certeza de que o louco está encaminhado
para si próprio, entregue à sua própria loucura, prisioneiro da própria
partida.
O louco é a alma-barca. é o navio fantasma
de Poe, que se 1ê no “Manuscrito encontrado numa garrafa”.
Adstrita a narrativa do rio, com uma
volubilidade algo escandalosa, a fala do pai se espacializa, de maneira vaga,
geral, complexa, no discurso do interdito, do entre-dito (discurso do rio): Sob
a pressão da lei de dados substituitivos, onde as sedes das indagações se deslocam
para a infância, a fala do filho (a falha do filho) só pode emergir de um
entrelaçamento consideravelmente complexo, determinando a irrupção de sua culpa,
num conceito auto-crítico, brilhante, altamente esclarecedor; o filho, e sua
falta, marginaliza o rio (resta na marginalidade do simbólico), é a tentativa
de ingresso, numa ordem pré-simbólica, de significante a significado; o filho
anseia o barqueiro, no limiar, no atrium. O pai realiza um
semi-discurso: O que se retrai da fala, a anti-fala. O filho não mergulha neste
simbólico pós-narrativo (o filho é o narrador, mas não ousa assumir a narrativa
trans-real, inter-dita do pai); o pai, de temer a fala, cala. Na dialética de
substituição, nome que não exprime uma redução, mas um desdobramento, o filho
não depõe o pai (de sua Loucura? do poder de seu Reino? Do reinado do
Imaginário? O simbólico não acede a Ali, não puxa a toalha da fala) para substituí-lo
— código hereditário — nesta genética de liberdade e de loucura. O filho permanece
filho (estado pré-símbólico) , não ascende a pai (estado de ser investido das
ordens) , não revoluciona o dizer, nem se resolve na assunção do poder de pai.
O pai, na sua recusa, desloca o poder para o Meio, para o Quase, o Semi, o
Impossível, onde forças emergentes oscilam a normalidade do código. O código
paterno se faz paralelo ao estado codificável, é o incodificável, o secreto, o
irrevelado, o recusado, no calar-se.
Esse pai transforma-se numa imagem, é o
Outro retraído, uma negação de identidade progressiva, numa desidentificação
primária. É uma imagem em que o filho não se reconhece, é um vazio sempre
vazio, uma brecha e uma “hiância”: A falha entre aquilo que falta a ser, aquilo
que é um buraco, um vazio, — e o complemento materno. O pai é um duplo do
filho, mas o filho se dá como castrado, nesse espelho.
A idéia de substituir o Pai, por parte do
Filho, revela a necessidade da lógica introjetada socialmente de explicar tudo,
de tudo ter sob o controle da razão. O Pai deu, assim, a paternidade e ao
Poder, um novo sentido para sempre.
Para o Filho, os dois deveriam revezar-se,
um substituindo o outro, como os operários de uma fábrica, como a aposentadoria
natural dos funcionários do Poder. O Filho reorganiza o Poder, na ausência do
Poder, como Poder pela ausência, pelo desamparo: Pois o Poder está de tal forma
internalizado na consciência do Filho, que sua Ida deixa um vazio impossível,
intolerável.
A saída para Outra Dimensão insuspeitada,
que não a codificada morte, é dolosa. Trata pois, o Filho, de restituir o Pai à
sua condição paterna. O Pai deve ser reconduzido ao seu lugar, mas o tempo
dissipado mostra que já é tarde. A razão trata de engendrar uma substituição
que racionalizaria a nova situação criada, até agora absurda, mas a liberdade
mostra que já é tarde.
A própria imagem da água serve para
neutralizar horizontalmente o certo e o lógico. Aqui, a água é também
revolucionária, pois uma “norma” estética que se patenteia aqui é a de que tudo
que a literatura toma para seu uso resulta imediatamente revolucionário (ver
Alice no país das maravilhas).
O dimensionamento tridimensional do rio
também interdita a razão, pois se trabalha no conto com aquela profundeza
invisível.
Em tudo se supera a razão que tudo cassa.
Todas as coisas, depois, ficaram perdidas,
na perda da origem na brecha do rio, na tenda da clandestinidade do Pai.
Esse personagem criou um complexo problema
insolúvel para a crítica nacional, pois o Pai desabilita a cadeia significante
com seu jogo de ir-e-vir, segmentado, incidente.
Pois o Pai não é o excluído, é o
impossível que acontece. A marca além do possível, contra-herói da modernidade
do homem moderno. É o recurso do não, anti-discurso. Que no Quase oscila
a normatividade da razão.
[i] LESKY, A. (1976), p.18.
[ii] Ibidem,
p.22.
[iii]
Ibidem, p.25.
[iv] HEGEL,
G.W.F. (1964), p.434.
[v] Ibidem,
p.437.
[vi] Ibidem,
p.439.
[vii]
Ibidem, p.479.
[viii]
Ibidem, p.480.
[ix] Ibidem,
p.480.
[x] NIETZSCHE, F. (1972), p.70.
[xi] Ibidem,
p.87.
[xii]
Ibidem, p.88.
[xiii]
Ibidem, p.109.
[xiv]
Ibidem, p.145
[xv].PROUST, M. (1957), p.321.
[xvi]
Ibidem, p.355.
[xvii]
LORENZ, G.V. & ROSA, J.G. (1971), p.307.
[xviii]
Ibidem, p.305.
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