segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

2.3.3 - As veredas

2.3.3 - As veredas

A lógica do sertão não é a da razão tecnológica. O humanismo moderno teme a lógica internacional. E teme a terceira posição, também, pois teme servir de “inocente útil”. O humanismo moderno se aproxima, no Brasil, da posição de sertão, da superação do sertão. O sertão é o mundo, o mundo ainda por fazer-se. O mundo livre do fazer por fazer, do saber não sabido. A tarefa humanística moderna não é atacar a lógica internacional, mas chamá-la “à realidade” da vida propriamente dita, da vida bio-psicológica. É a posição brasileira. A literatura brasileira brada por isto, desde Euclides. A lógica do sertão salva o Terceiro Mundo. Alguns escritores brasileiros conseguiram Conviver aqui com momentos considerados difíceis. O espírito sertanejo impregna nossa cultura, nossa maneira de ver o outro. Pois o sertão é o lugar da subjetividade, do isolamento individual solidário. E o sertão é solidário. O viajante do sertão encontra com facilidade acolhimento, hospitalidade. A tradição hospitaleira.esta na raiz da liberalidade sertaneja brasileira. Não há, de imediato, desconfiança no homem do sertão. O sertão é casa que acolhe a todos como irmãos. O jagunço do sertão, diz Riobaldo na página 13, sempre foi bom pai, bom marido, e amigo de seus amigos. O sertão se compraz em contar, em ouvir, em cantar. Não há cântico da cidade moderna. Há a canção do sertão, a toada do sertão. Nele, grande contradição, o homem pode andar desarmado, quando vem em paz. O sertão é contradição, que supera tudo. A crueldade no sertão é heróica, e mítica, é mitológica. Dificilmente um pesquisador de campo teme o sertão. Os “doutores” são respeita­dos e acolhidos no sertão. Viaja-se sozinho pelos imensos rios do sertão. Não há crueldade econômica no sertão, porque não há a razão prática. O sertão não é prático. O sertão é subjetivo. Não há lucro no sertão, pois quem o afere mora no Rio, ou em São Paulo. Não está 1á. Os grandes latifúndios não são homens do sertão. Mas no sertão, tudo se ajeita, desde que haja “respeito”.

A lógica do sertão é outra. O sertão respeita tudo, mas quer ser “respeitado”. O “doutor” é respeitado no sertão. O sertanejo é carente, qualquer sorriso o vence. O sertão está próximo do animal doméstico. O sertão é domesticável, ou pelo menos o tem sido até agora.

Pois agora o sertão ganha outra figura, desaparece. No interior do sertão estão instalados os aparelhos da TV. Tal­vez seja um perigo para a ordem estabelecida, pois o sertão se desencanta, desperta do misticismo. O sertão era místico e mi­tico. Era lugar de rezas, de Antônios Conselheiros, de Padres Cíceros. O sertão era o império da moral, da virgindade. O sertão era sagrado. Era o mundo no seu estado subjetivo. Até bem pouco tempo, o sertão não conhecera nem os ecos da primeira revolução industrial. Estava naquela fase semi-medieval do estado comercial. Havia “reis”, no sertão subjetivo.
Mas o sertão não era um lugar abençoado por Deus. Ao contrário, o demônio imperava no sertão. Havia pactos, havia medos. Pois o sertão era o Desconhecido. E, se Deus é luz, o sertão estava imerso na semi-obscuridade. Era povoado de entidades. O sertão era estágio heróico do mundo. Lugar das coisas extraordinárias, de tantos assombros. “Um está sempre no escuro” da realidade incognoscível, da ótica conturbada das lágrimas, das paixões juvenis de príncipes e princesas sertanejas encantadas. Dos milagres e das aparições. O fantástico, no sertão, assume o caráter da aventura, do simbólico, reinventa a subjetividade.
Pois o sertão era o lugar das fantasias, dos sonhos (e da loucura), do insubstancial, do ermo, do vazio. Uma noite, no sertão, na ampla escuridão de todas as estrelas silenciosas, na respiração selvagem que as sombras das arvores filtram, tem o poder mágico dos medos primordiais, dos medos sagrados. Toda procura, toda fantasia, no sertão, segue o caminho da subjetividade.
 “Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa”, “já não tiro sombra dos buracos” — hoje o sertão está desencantado, lentamente se aburguesa, moderniza-se. Riobaldo é atualíssimo.

Não no passado, isto é, no sertão. Pois o sertão tem sempre o sentido do passado, nunca o sertão é o futuro, O sertão é lírico, subjetivo. A grande maioria dos escritores brasileiros passaram a infância nas casas grandes da subjetividade passada.O sertão do passado tem a pátina da magia dos primitivos desígnios do homem, das primeiras experiências, da emoção dos que sonhavam nas varandas. Por isso, o sertão está misturado com infância e com subjetividade. Pois: o sertão é infantil, é subjetivo, O sertão nunca é adulto. Riobaldo, Diadorim, nunca foram adultos, não amadureceram, eram jovens adolescentes nos caminhos do sertão. Todo sertão tem de ser assim, sempre visto pelos olhos de Carlos de Meio. é algo perdido, perdido no tempo, longínquo, remotíssimo.
Este saber literário talvez não esteja de acordo com os cânones da ciência (pois a ciência da literatura também é ciência), mas é um saber, em troca de outros saberes. É um saber vivido, em troca de outros saberes sabidos. Reivindicamos, agora, a validade deste saber. E assumimos os mesmos riscos do saber novo, do saber literário. Pois o Brasil deste final de século precisa com urgência ser repensado. E só se pode repensar o Brasil literariamente, isto é, com a lógica do sertão. Pois o Brasil é um país essencialmente 1iterário. É um país que tem uma literatura essencial, representativa. O Brasil ainda vive literariamente. O Brasil ainda é o Brasil subjetivo.
E esse pensar literário brasileiro é o pensar sertanejo. Um risco. Chega-se a pensar no limite, isto é, no risco do limite. Pensar no risco do limite, é pensar literariamente.
Pois o risco de uma decisão está presente enquanto houver o perigo da sedução literária. É um daqueles três perigos apontados por Heidegger. O literário aponta sempre para um teleologismo fantástico. Parte de uma decisão secreta, que se desdobra em graus de se deixar levar pelo domínio dos fatos extraordinários, que são aqueles que participam da natureza, e do espanto de que falava o filósofo. O espanto é o que causa impacto, portanto, beleza. Pois beleza é o produto do impacto estético. É o surpreender do que surpreende, isto é, o surpreender da existência do real. Não é o irreal que surpreende, mas sim o real é que é extraordinário. Vê-lo é algo tão perigosamente revolucionário como o despertar súbito para a verdade subjetiva. No pequeno fato está o universo. “Oh, eu posso estar encerrado numa pequena noz e sentir-me senhor do universo absoluto”, disse o Príncipe Hamlet.
Como país do Terceiro Mundo, o Brasil ficou à margem da avassaladora racionalização da razão tecnológica, livre do desencantamento e da morte do mito. A lógica brasileira é a 1ógica do sertão. Ilógica e contraditória.
A racionalização tecnológica foi impotente, aqui, como na literatura africana, como fator de desencantamento do mítico sertão brasileiro, que permaneceu como lugar sagrado, em que os deuses antigos podem “sobreviver”, e os valores da emoção, sobre os da razão, podem vigorar completamente.
O sertão não foi, no Brasil, destituído de sua “aura”, não foi “desmascarado”, não foi denunciado pelos aparelhos de repressão tecnológica e ideológica.
O sertão atravessou o desencanto naturalista incólume, sem perder o seu prestígio e a figura de um lugar privilegiado e miserável, onde o sobrenatural continuou, sem ser devastado pelo natural do naturalismo. Privilégio e miséria é a contradição dialética do sertão subjetivo.
O encanto do sertão de Alencar, de O Guarani, continua existente, embora aguerrido, em Os sertões de Euclides, até Grande Sertão: Veredas.
O sertão é lugar de resistência heróica dos valores do prazer e da dor, do inconsciente e do fantástico, da desrazão e do sobrenatural, do inefável, da fantasia, da imaginação, sobre a razão, da subjetividade.
A lógica do sertão é o nosso grande trunfo, o nosso escudo, o nosso meio de sobrevivência emocional, no que temos de mais radicalmente humano.
Atesta a lógica do sertão a vitória da incerteza sobre o certo, do duvidoso sobre o seguro, do não-saber sobre o saber. Esta vitória nos redime e nos afirma como baluartes dos valores humanos, na declaração desses valores humanos, nos declara valiosos nesta estranha luta em prol dos valores subjetivos declarados.
O sertão é o possível contra o certo. é o caos criador, contra o sistema de valores computáveis. Pois o sertão é o imensurável, contra a medida. O inapreensível e o onírico de tudo o que sonha e sente.


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