segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

2.2.6 - A Resposta

2.2.6 - A Resposta

 “Acertasse eu com o que depois fiquei, para lá de tantos assombros...”[i] diz o Narrador: “Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala”[ii]. Qual é a realidade com que Riobaldo se articula? É a realidade o alvo incognoscível de um tiro no escuro? É aquilo que está para lá de “tantos assombros?”. Filtra-se, e enfim dela nos chega por indícios alguma indicação imprecisa, através da ética conturbada de paixão com que nos dispusemos a vê-la? Ver é um grande milagre. E ver-nos tais quais somos é o que produz a descoberta fundamental. Mas não é isso senão raramente possível. “Um está sempre no escuro, só o último derradeiro é que clareiam a sala”. Assim é que, no dizer de Bakhtin, a “sátira menipéia” toma a “fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura..., pelo fim de criar situações extraordinárias para provocar... uma verdade[iii]. E sobre isto diremos mais algumas palavras a seguir.
Segundo o autor de Problemas da poética de Dostoievski, é, a origem da formação da variedade do romance que ele classifica de dialógica possui dois determinantes que são dois gêneros do campo cômico-sério: O diálogo socrático e a sátira menipéia, o primeiro dos quais teve vida breve, mas que no processo de sua desintegração provocou outros gêneros dialogais.
Esse gênero (a sátira menipéia) deve sua denominação ao filósofo do século III a.C., Menipo de Gadare, cujas sátiras não chegaram até nós. A “sátira menipeia”, entretanto, não é apenas um produto da decomposição do “diálogo socrático”, mas as raízes de sua formação remontam ao folclore carnavalesco.
As situações extraordinárias procuram a provocação, a experimentação de uma visão, de uma verdade. materializada. E a fantasia serve à busca, serve à provocação, a experimentação de um momento de verdade.

O fantástico assume o caráter de aventura, às vezes simbólico... subordinado à função puramente ideológica de provocar e experimentar a verdade[iv].

Na menipéia surge a modalidade específica do zÇctn4ôks Neo expetLtnen~taZ: “O real não está”, diz Riobaldo, “na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”[v].
As fantasias, os sonhos e a loucura “destroem a integridade épica e trágica do homem e do seu destino”[vi]. A quebra da norma, atingida pela “palavra inoportuna”, revela, por sua franqueza cínica, ou pela profanação do sagrado, pela violação da entidade ideológica que sustenta a arquitetura do bom-senso, a quebra da norma revela que, por trás do fluxo cultural que nos mantém como cultura viva, pode-se descortinar um princípio (verdadeiro) do Real, que ameaça ser o que sua natureza aparenta: O insubstancial, o transitório, o vazio. Assim, o real aponta para um escândalo: para o oco. Uma carnavalização. Cuja categoria predominante é a profanação. A profanação é a demonstração de que o rei esta nu.
O questionamento do real, sua procura, sua provocação, ainda que depois se descortine o insubstancial, o vazio — é o processo da ambigüidade da norma, da profanação do sagrado e do saber (pelas aventuras ao lugar do fantástico experimental) processo esse que é identificado com a carnavalização mesma, cujo papel primordial é a paródia das leis do instituto do sagrado, pelo ridículo que é quando deixa de apavorar.
O sagrado se institucionaliza mesmo pelo caráter respeitável do discurso da ciência, tradicionalmente acatado como norma e como meta. O Poder, expansivo e distribuitivo, é o poder do discurso do sagrado, isto é, da vida da ciência, da vida do saber. Poder é saber. Qualquer violação, qualquer procura, qualquer fantasia fica excluída de sua possibilidade, fica no reino do inefável. E, “o que nos chamamos de inefável não é outra coisa que o não verdadeiro, o irracional, o que simplesmente nós imaginamos” disse Hegel, na Fenomenologia do espírito[vii].
“Hoje em dia”, prossegue Riobaldo, “não me queixo de nenhuma coisa”[viii], isto é, no tempo da narração já o narrador está ausente daquele lugar do, fantástico experimental, já está em casa, longe das aventuras e das situações extraordinárias, já “não tiro sombra dos buracos”[ix], já está na velha e nova arte, pois “os homens, quando estão a ouvir frases de estilo, / Pensam que deve haver o que pensar naquilo”, como falava Mefistófeles[x].


A superpotência
Da magna ciência,
Do mundo escondida:
Quem não pensa é quem
De presente a tem
Sem canseira e lida[xi].

Se Riobaldo tivesse acertado o caminho, poderia “ficar sabendo”, não teria experimentado as situações extraordinárias que estavam para sobrevir, “para lá de tantos assombros”. “Um está sempre no escuro”, só no fim, só “no último derradeiro é que clareiam a sala”. Ver, o grande milagre: ver-nos. Para a produção da descoberta radical, da revolução fundamental. Ver é um milagre ou uma profanação.
Mas não só é extraordinária o ver, como também é extraordinário o visto, O poeta hoje aparece como um navegador que, por própria experiência e por especulações com que se enriquece, busca a descoberta de regiões inexploradas dentro da significação de sua cultura e de sua época. Como encontrar sua própria experiência refletida, antecipada, nos limites que registram a tradição? Como ficar no bom-senso, como encontrar-se nesta margem, sem o risco da travessia?
O risco, presente na propulsão, na produção do texto, é conseqüência de uma decisão pelo fantástico. É proximidade daquela margem do rio. “Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade”[xii]. Entrar no fantástico é tornar ambígua a norma da margem.
— “Daqui vamos voltar?” — eu pedi, ansiado. O menino não me olhou — porque já tinha estado me olhando, como estava. — “Para que?” — ele simples perguntou, em descanso de paz[xiii].

O risco de uma decisão não está presente enquanto houver o perigo de sedução. Riobaldo: “Disse que ia passear em Canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim”[xiv]. Deixou-se levar: “Ele me deu a mão, para me ajudar a descer o barranco”[xv].
De uma decisão se pode dizer que é conseqüência — depois de colher os dados, o sujeito toma uma decisão frente aos problemas. Esta decisão é ação efetiva no domínio dos fatos. As palavras são comandadas por uma direção em que se orienta, para um teleogismo fantástico. Essa ordenação parte de uma decisão secreta, ideológica, que se desdobra em graus de se deixar levar para o domínio dos fatos extraordinários. A escalada progressiva do fantástico se dá por quebras sucessivas de ordens e de normas.
No texto literário a escalada ao fantástico é atingida na comunicação drástica, isto é, na drasticidade, no surpreender do apropriado, no estabelecer relações dialéticas entre expressões do discurso poético e das estruturas sociais. Dir-se-ia que a decisão pelo fantástico mobiliza todos os recursos da linguagem, submetendo-a a critérios drásticos, mas seletivos, diante do conjunto das alternativas recorrentes. Eis a geratriz compacta da estratégia do fantástico, da prosa da “palavra inoportuna”. Da profanação do sagrado que instala um novo sagrado — a prosa de ficção. Pois o Poder sempre recupera, para si, as áreas conquistadas pela imaginação, institucionalizando-as a seguir, naturalizando-as a seguir, pois o Poder é sábio. O inefável, institucionalizado pelo estatuto do Poder, atrasa sua viagem, sua conquista. A inteligência mesma tira sombras do buraco, com a pseudoluz da naturalização. Pois o insubstâncial em que se constrói a realidade fantástica, como os bumerangues das velhas ilustrações, traz sempre tudo de retorno. Repõe tudo, de volta, nos seus devidos lugares. Passa a fazer as mesmas “frases de estilo”. E com reprimendas: Se Riobaldo tivesse sabido que sua aventura teria retorno, sua errância pelo fantástico não teria dado em nada (ou teria dado no drástico fantástico em que deu) , atravessaria aquela margem, ter-se-ia deixado levar, por aquela mão “bonita, macia e quente”[xvi], para lá de tantos assombros? Mas ninguém está no claro, a sala está escura. Não vemos, não nos vemos. E o risco é certo, talvez necessário. A decisão, digo, a sedução pelo fantástico, pelo quebrar da norma da margem, está sempre presente, nas aspirações da literatura moderna. E depois, tendo retornado milagrosa e exteriormente ileso à margem, ainda assim, através da comunicação drástica ao Doutor, como se fora ao psicanalista, sonha o sonho ousado, como se a narrativa fosse vida mobilizada, com todos os seus recursos e sua artimanhas: Suas tramas.
Os termos “fantasia” e “imaginação”, no pensamento filosófico, muito se aproximam, e quase se fecham, como termos complementares. “Fantasia”, na tradição do pensar ocidental, se traduz como “aparição”, “ação de mostrar-se”, “espetáculo”, “representação”[xvii]. Phantasia encontra-se em Platão e em Aristóteles[xviii]. Fantasia, “phantasia”, geralmente é traduzida por imaginação na antiga psicologia filosófica, como imagens pintadas na imaginação[xix]. E o nome comum que pode significar tanto “aparição”, quanto “representação”.
A fantasia em Platão era representação que surge do “aparecer”, contraponde-se ao conhecimento do ser ou do real. São as sombras, ou reflexos, produzidos pelas coisas verdadeiras. E é assim que, segundo Platão, as representações surgem na arte.

Aristóteles sistematizou o conceito: Segundo ele, a fantasia ou imaginação não pode ser equiparada nem com a percepção, nem com o pensamento discursivo, se bem que não haja fantasia sem sensação, nem juízo sem fantasia[xx]. “Surgimento já tende ao encobrimento”, diz o Fragmento 123 de Heráclito[xxi], isto é, a natureza gosta de ocultar-se. Emmanuel Carneiro Leão, ao traduzir o texto, quase diz: O que surge se oculta (“Surgimento já tende ao encobrimento”).
Por isso escreveu Nietzsche, na Origem da Tragédia:
Todo homem que for dotado de espírito filos6fico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente[xxii].

A percepção deste sutil dado intangível é o que os gregos chamavam de nous, órgão com que os gregos desconfiavam da realidade. Os sentidos são, desta maneira, uma espécie de condição para a noesis, numa condição imperfeita, bárbara: “Para os homens os olhos e as orelhas dos que têm mentes bárbaras, são más testemunhas” — diz o Fragmento 107 de Heráclito[xxiii].
“A vida não é coisa terrível?” — pergunta Riobaldo[xxiv]. Pois, por trás da realidade em que vivemos, não se esconde outra “muito diferente, e, que, por conseqüência, a primeira não passa de uma aparição da segunda”[xxv]? Nietzsche nos diz, no texto citado, que Schopenhauer define “o. sinal distintivo da aptidão filosófica na faculdade que alguns homens possuem de se representarem os seres vivos e as coisas inertes como puros fantasmas”[xxvi]. E conclui que “o homem dotado de sensibilidade artística comporta-se para com a realidade do sonho da mesma maneira que o filósofo se comporta perante a realidade da existência”[xxvii].
Por isso, diz Hans Sachs, nos Mestres cantores:
A arte da escrita e da poesia
É dizer a verdade do sonho[xxviii].

Prossegue Riobaldo: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. (...). Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”[xxix]. São sombras, reflexos. “A harmonia invisível 6 mais forte do que a visível”, diz o Fragmento 54[xxx]. o surgimento já tende para o encobrimento. O surgimento do que aparece para Riobaldo, aquele Menino, o Sertão, o Urucúia é o fantástico, o reino em que viver é contar. “A linguagem e a vida são uma coisa só”, disse Rosa em entrevista a Gunter Lorenz: “O idioma é a única porta para o infinito”[xxxi]. Diz mais: “O Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem ser separados”[xxxii]. Por isso, no dizer de Meyer-Clason, “o começo da sabedoria parece ser o ponto de interrogação, a dúvida”[xxxiii]. Todos os escritos de Rosas são tentativas de “rodear e devassar
um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que g chamada “realidade”, que a gente mesmo, o mundo, a vida”[xxxiv].

O fantástico, em Rosa, está no nível do discurso.
O cotidiano pode ser definido pela onipresença do enigma da convivência do real com o irreal, do conhecido com o desconhecido. O fantástico é dual, antinômico[xxxv].
O fantástico trabalha a partir do questionamento da realidade, que põe e que questiona como hipótese falsa, através de acontecimentos estranhos que acontecem, e a que dá uma aura de incerteza e para os quais não encontra nenhuma explicação satisfatória.
O fantástico é.vizinho do sobrenatural, o sobrenatural lhe é familiar, pois tem a função de preparação, de introdução espetacular de um quadro que não vai explicar.
Entretanto, o fantástico trabalha com a atualidade, com o presente, com o retrato da realidade em que se inscreve. Este é um retrato solipsista da realidade, uma imaginação solipsista, introduzindo o mistério nas relações normais da vida cotidiana[xxxvi].
Assim, o fantástico pode ser descrito como imanente ou natural, tratando de uma realidade que já é por si mesma fantástica; como sendo a análise do aspecto sombrio da realidade humana; aparecendo como um modo de exploração do inconsciente; e como uma combinação do estranho e do maravilhoso.
A nenhuma destas explicações Irère Bessière credita uma completa interpretação do fenômeno da literatura fantástica, pois todas partem de um anti-racionalismo. Diz ela que parece mais pertinente relacionar o fantástico com a pesquisa, conduzida de um ponto de vista “racionalista”, a fim de colocar em questão as formas da racionalidade. Trata-se de não confundir anti-racionalidade com irracionalidade, e não levar os elementos da análise a se disporem em sistema maniqueísta de oposições[xxxvii].
O fantástico não estabelece ruturas intelectuais, mas conjuga os contrários, o real e o irreal, o banal e o estranho. A narrativa fantástica não resolve um esclarecimento cultural, mas realiza um jogo do irreal e do inverossímil com determinada função da racionalidade, para questionar a própria racionalidade vigente.
O fantástico é a polivalência dos signos intelectuais e culturais, e não exatamente uma oposição entre razão e imaginação. Ele marca, assim, a medida do real através da ambigüidade da medida. O ingrediente obrigatório é o ceticismo que atravessa a razão e a desrazão. Assim, é a razão mesma que comanda o fantástico, a razão nos seus movimentos, numa sociedade em que a racionalidade com relação a um fim comanda as relações interpessoais, e em que a razão social passa a ser a razão do Estado, detentora do poder de organização e de manutenção da ordem e portanto de toda a vida dos homens.
Eis porque a narrativa fantástica se apresenta como a transcrição da experiência imaginária dos limites da razão, conjugada com o sobrenatural de tal forma que a motivação realista é indissociável de um princípio de irrealidade, e onde ora os dados da realidade empírica, ora os do sobrenatural, resultam insuficientes para iluminar o enigma da realidade que permanece, ela mesma, em sua natureza fantástica, sugerindo aquilo que em verdade não pode ser, porque não pode ser explicado.
É claro que os economistas podem explicar, e com que relativa facilidade, a natureza da realidade. Todo tratado de princípios econômicos aspira a ser um modelo da realidade. Por. exemplo, para Adam Smith a riqueza das nações resultava do diligente empenho de cada um dos seus cidadãos em seus próprios interesses, pois defendendo seus próprios interesses o indivíduo serve ao interesse público. Isso era em 1776. Os economistas têm os pés no chão. Os romancistas, porém, querem ver além disto. Não aceitam as explicações lógicas e visíveis. Para estes, a realidade vai além, pois para eles existe a realidade da morte, que o economista exclui, esquece, omite.
Os economistas não tratam da realidade a partir de seu lugar de sujeito, mas lidam com dados (e riquezas) do trabalho e da sociedade. O econômico exclui a desrazão, enquanto que a imaginação literária transpõe o jogo da razão e da desrazão, pois quando o sujeito se conhece como indivíduo por este jogo, reconhece que a realidade é irrecuperável.
A narrativa fantástica é orientada formalmente por uma dialética de reconstrução, como realização de projeto criador. Utiliza quadros sociológicos que extrai do perceptível e do sobrenatural, do banal e do extraordinário, a fim de definir a realidade, de interferir nela: Por isso, pressupõe uma discussão ideológica. Uma crítica ideológica esta imanente no texto fantástico.

A consciência do real que sustenta o texto da literatura fantástica repousa na própria incerteza, na desrazão instalada, na ultrapassagem da ordem e da desordem que são adivinhadas pelos homens na natureza das coisas banais e na sobrenatureza das coisas estranhas, ao nível de uma racionalidade formal, como a que se encontra por trás de todos os movimentos do jogo da realidade do mundo do capitalismo avançado, onde racionalidade se pode definir como produtividade e propensão para a estabilidade, para o crescimento e para o progresso.
Assim, o destino e a desgraça do capitalismo e o de crescer indefinidamente, o capitalismo está condenado a um crescimento ilimitado, e a incerteza serve como instrumento de avaliação apropriada do mundo contemporâneo, sobre o que os economistas desenvolveram teses que decorrem da interpretação da realidade atual das economias de capitalismo avançado, na base do conceito de opulência e socialização, onde desenvolvem a idéia de que o incremento da produção não se coloca mais como problema central da vida social, o que significa uma grande crise de incerteza e a idéia de que já não se justifica historicamente o próprio capitalismo.
Assim, na dialética que se estabelece, entre a necessidade que tem o capitalismo de crescer interminavelmente, e o fato de que o avanço da produtividade não é mais o problema principal das sociedades modernas, justificando assim um presumível fim do capitalismo, reside a noção de realidade que oscila entre o presente e o futuro do mundo moderno. Pois toda descrição e narração é uma confirmação, uma reconstituição da realidade, e como evocação significa o apelo para a ordem de uma sociedade vindoura. A literatura hoje recolhe as imagens e os discursos sócioculturais, que aparentemente normais e necessários engendram o original e o arbitrário. O estranho é o registro da relatividade do normal e do anormal. Examina como as coisas chegam a se organizar e a se desorganizar num universo em transformação. A literatura, por um processo de generalização, mostra a facticidade do universo, abrangendo o natural e o sobrenatural. A questão do fantástico não é, então, a transformação, mas o que está acontecendo nesta transformação. O estranho, o inquietante, não é o sujeito, mas a ocorrência, a desestruturação do mundo[xxxviii]. Nosso é o mundo da indeterminação.
Num mundo de realidades, fragmentadas, o maravilhoso que tende para o universalismo, cede lugar ao fantástico que atende para a singularidade. O fantástico sai do maravilhoso, do qual conserva o pendor para o sobrenatural. O maravilhoso distingue-se do fantástico porque o maravilhoso tende para o sujeito transcendental, para o espírito absoluto, enquanto que o fantástico questiona a singularidade do caso, a ambigüidade que impossibilita uma afirmação, impondo um clima de indeterminação. O fantástico não chega à explicação, imprimindo-se ao fantástico um caráter suspensivo, próprio do caráter de cada caso, fragmentado. Trata-se de por uma questão sem esperar a resposta. Lugar do questionamento, não dos resultados.
Esta impossibilidade de solucionar questões que a si mesmo propõe, nos termos essenciais da literatura, deriva da impossibilidade de solucionar problemas, já que todas as apresentações e demonstrações das várias soluções possíveis são colocadas e novamente questionadas ou relativizadas, ou sempre degeneram.
Estes fatos acima descritos são responsáveis pelo caráter contraditório, ambivalente da literatura, seu aspecto paradoxal. Ela se reconhece e se constitui como alteridade absoluta, que diz a falência e a miséria, a essencial perplexidade do mundo moderno, a arbitrariedade de toda razão e da realidade mesma, no nível do medo e do terror, do desconhecido, dos dados subconscientes e do erotismo que fazem o fundo de sua organização lúdica. Assim o fantástico constitui a forma literária da loucura solidária. Instalando o estranho, melhor instala a crítica: visão presumivelmente solipsista e reacionária do devir histórico.
No mundo moderno, o fantástico não está somente no reino das coisas ditas anormais, sobrenaturais, mas se encontra dentro da própria realidade, quando se consegue vê-la.
Fantástico, pois, não é apenas um desvio da norma, mas e a norma mesma, quando submetida à crítica.
Por isso, em se tratando da sociedade moderna de capitalismo avançado, a denúncia freqüentemente está no campo do fantástico, de que Kafka foi um dos pioneiros e que, acusando ou imaginando a realidade, atesta o absurdo do domínio da violência.
O protesto artístico contra este tipo de dominação também se inscreve no fantástico. A arte é inútil, radicalmente inútil. No radicalismo desta inutilidade reside a força de seu protesto numa sociedade que sempre visa ao lucro e à utilidade.
No quadro da sociedade moderna, a literatura assumiu uma colocação de “realismo fantástico”, como crítica da sociedade de capitalismo monopolista. Denuncia a ideologia tecnológica dominante, a organização econômica da administração. Sua função, através do fantástico, é revelar as mascaras que a dominação tecnológica encobre. O realismo fantástico ataca duramente a tecnologia científica como elemento de dominação dos homens.
A literatura latino-americana denuncia as sociedades tecnológicas.
A reação literária latino-americana e muito patente no fantástico, do tipo de Guimarães Rosa. Pois a arte não protesta às claras. O protesto artístico é mais sutil e por isso mesmo mais radical. A arte mostra o que não quer admitir. A arte deforma a realidade que critica. Mostre o “avesso”, o “inverso”, usa de estranhos processos (cada escritor tem os seus) para atacar o problema da miséria, do intervencionismo.
A revolução radical — tarefa da literatura — não se dá pela simples substituição de um sistema por outro, mas pela reeducação do próprio homem, e é por isso que toda crítica social deve começar por uma revisão do sistema educacional, para ver se os jovens estão sendo preparados para ter sucesso na vida ou para serem homens menos ambiciosos. O sistema educacional vigente nasceu sob o modelo do capitalismo liberal de livre iniciativa. A história da filosofia da educação pode chegar a provar isto. A educação na antigüidade, orientada para a pólis, e presente na Ética a Nicômaco de Aristóteles, difere radicalmente dos ideais do pragmatismo das escolas modernas, onde a competição foi estimulada. E a tecnologia-científica da escola de hoje ainda esta orientada para o saber racional, e não para a formação de um caráter e de uma integridade madura que caracterizaria o homem menos ambicioso. Educar é descondicionar o homem. Educar á função literária.
Por “revolucionário” poderíamos compreender uma atitude de total rejeição da natureza de dominação racional, não no sentido meramente de querer mudar, mas no sentido de negação, de emancipação interior, de abertura dos espaços interiores do sentimento.
A liberdade não está no espaço da exterioridade. Para a emancipação, liberdade poderia estar na existência de um espaço interior, utópico.
O caráter revolucionário que definimos significa que sé podemos atingir a emancipação, hoje, pelo estado interior de liberdade, isto é, de espaço. E espaço da subjetividade.
Espaço significa uma negatividade completa (não significando os indivíduos levados a abandonarem suas funções sociais de solidariedade), no sentido de que, no interior de si mesmo, o indivíduo abre amplo espaço onde não imperam as ordens do totalitarismo tecnológico. Onde não há medo, portanto, do fracasso.
Entretanto, o indivíduo mesmo, nas sociedades modernas, está impossibilitado de sair da norma e do funcionamento de dominação social relacionado com um fim, mantendo-se interiormente em permanente trabalho. O problema não é o trabalho e a ocupação, mas o saber porque interiormente temos de manter-nos continuamente ocupados, sem nunca haver, nos períodos de vigília, a mínima pausa para que seja possível abrir o espaço da liberdade. Em outras palavras, porque não deixamos de ser trabalhadores, mesmo quando não estamos trabalhando. Acreditamos que mesmo o chamado lazer e uma ocupação e um preenchimento dos espaços interiores. E espaço não significa que estejamos dormindo, ou condicionados como que hipnotizados.
Reconhece Habermas que, para o progresso científico e técnico não há nenhum substituto, nenhuma possibilidade de mudança desta para outra nova ciência que fosse mais humana.
A racionalização institucional, diz Habermas, se faz através da liberação comunicacional, da livre discussão pública dos temas, que forma e consolida a vontade política do Estado, como elemento estabilizador da permanente desestabilização. É a preferência ao livre arbítrio de expressão, que pode permeabilizar o constante feed-back do Poder, humanizando-o e orientando o quadro institucional sempre orientado para melhores fins “racionais”. Entretanto, o modelo dinâmico do capitalismo, que tem estrutural necessidade da opinião pública “formada”, controlada ao nível da despolitização, mostrou sempre uma certa resistência ao tipo de comunicação artística.
Habermas estabelece, para reformular o conceito de “racionalidade” de Max Weber, uma distinção entre “trabalho” e “interação”, ou comunicação; trabalho é a atividade instrumental ou uma escolha racional, ou uma combinação desses. Obedece às regras técnicas aprendidas pelo saber empírico. As condutas da escolha racional se orientam segundo uma estratégia aprendida do saber analítico. E a estratégia implica deduções provenientes de regras de preferências e sistema de valores. A atividade racional visando a um fixa realiza, assim, objetos definidos.
Por atividade comunucacional ou interação, se entende a interação mediatizada pelos símbolos.
O processo de evolução de técnica corresponde à atividade racional do trabalho. Entretanto, em lugar de tratar a natureza como objeto, diz Habermas que seria possível dispor tecnicamente dela, ou ir ao seu encontro como co-participante, numa interação possivelmente harmoniosa. Podemos pesquisar a natureza fraternal, em lugar de trabalhar a natureza explorada. Poderíamos comunicar-nos, em lugar de trabalhar a natureza sem comunicação. Somente na medida em que houvesse esse tipo de competência comunicativa é que poderíamos reconhecer na natureza a espécie humana, reconhecer o outro. O reconhecimento do outro é fundamental para o estabelecimento do diálogo com a natureza e entre os homens, através da mediação dos símbolos.


2.3 - Terceira Parte: A Recuperação da Subjetividade

2.3.1 - Estática da Recuperação

Não vemos distinção entre crítica formal e social. Ou ao contrário, é a forma que expressa o conteúdo. É claro que existem críticas essencialmente formalistas, e estáticas essencialmente sociológicas. Seguimos de perto a doutrina homológica da sociologia do romance de Goldmann. Entretanto não estamos longe do conceito de herói problemático de Lukács (s/d): O romance se caracteriza pela ruptura insuperável entre o herói e o mundo, engendrando uma oposição constitutiva (Teoria do romance). O romance participaria de uma natureza dialética entre comunidade e ruptura. O herói, louco ou criminoso, busca inautenticamente valores autênticos num mundo inautêntico (teoria próxima da de Girard, como vê Goldmann, 1976). A forma literária nasce da necessidade de exprimir um conteúdo essencial (Lukács) , e o romance e a criação imaginária de uma sociedade regida pela degradação. Mas a sociologia do romance procura verificar a homologia entre forma romanesca e estrutura social. No caso de Grande Sertão: Veredas estas duas categorias são antagônicas, por isso mesmo problemáticas. Mostramos no decorrer deste texto em que são antagônicas. Aliás, todo este texto visa a este fim: mostrar o antagonismo entre forma romanesca e estrutura social em Grande Sertão: Veredas. A obra e, como diz Goldmann, a concretização das tendências próprias de um grupo (no caso da comunidade literária), consciência que se deve conceber como uma realidade dinâmica, orientada no sentido da critica social. Os teóricos marxistas sempre pensam que a vida social não pode exprimir-se no plano literário senão por intermédio da consciência coletiva: no romance de Rosa estudado, acreditamos que esta comunidade de consciência seja da própria comunidade literária, que no Brasil sempre teve, pelo menos até 1960, grande influência na vida da sociedade e no caráter do Estado, no sentido de um humanismo sempre constante. Aceitamos, que a busca de valores do personagem se dá em meio à luta por valores autênticos numa sociedade inautêntica (e o nosso personagem não é Riobaldo, mas Diadorim), e a vida econômica tende a se tornar implícita em todos os membros da sociedade, ou seja, a consciência coletiva converte-se num reflexo da vida econômica e, no capitalismo monopolista, tende a desaparecer. Isto cria um problema de literatura assimilável (consumida) e grande literatura. A grande literatura (oposta a trivial) não é consumida pela massa que ela critica, exceto quando “facilitada” pelos médios, ou promovida pelo marketing, que faz com que um filosofo obscuro tenha uma edição de quase cem mil leitores que consomem mas não assimilam (ou não lêem).
Portanto a consciência coletiva que é veiculada pela grande literatura é, afinal a consciência de uma minoria (de um elite intelectual, literária) que nem sempre é assimilável pela massa.
Assumimos uma atitude dialética hermenêutica em que forma e conteúdo se implicam, e em que na forma reside o conteúdo que é expresso. Este trabalho toma um sentido em que estas “categorias”não se separam, privilegiando, entretanto, os aspectos sociológicos do romance sobre os aspectos formais, mas a forma é o conteúdo. Embora o que a forma diz é o que nos interessa sociologicamente, é necessário lembrar que Diadorim e forma, embora com significados. Aqui se encontram os refrões temáticos, a espécie de tematização e pontuação de motivos recorrentes, reiterantes, ao mesmo a que sempre volta o texto, caracterizando uma espécie de pedagogia da repetição propositalmente dada.


2.3.1.1 - Um Problema Hermenêutico.

Ricoeur chega a dizer do “enxerto do problema hermenêutico sobre o método fenomenológico”, pois o problema da hermenêutica constitui-se anteriormente à fenomenologia de Husserl. O problema se coloca nos limites da exegese, isto é, do método de compreensão de textos a partir de sua intencionalidade, sob duas “vias”, a via “curta”, ou heideggeriana, e a via “longa”, ou aquela que o Autor pretende percorrer[xxxix].
A chamada “via curta” é a da ontologia da compreensão,que lança os problemas do método ao plano de uma ontologia do ser finito, para com tal método compreender não como modo de conhecimento, mas como modo de ser. Isto pode ser dito de outra maneira, diz Ricoeur, ou seja: O que é um ser cuja existência consiste precisamente em compreender? Essa é assim a pergunta da ontologia da compreensão[xl]
A chamada “via longa” também tem a ambição de chegar a uma ontologia, mas gradativamente. Seu método e uma epistemologia da compreensão, que se estende sobre as ciências, que constitui mesmo como reflexão sobre diversos saberes, sobre a psicanálise, sobre a fenomenologia da religião etc.,procurando ver quando esta epistemologia da interpretação é atingida ou animada, solicitada por uma antologia da compreensão, que coloca o ser-conhecer como centro de seu pensar, o ser cujo ser é conhecer onde o sujeito é o pólo intencional que se coloca como sujeito cognoscente[xli].
Este método liberta-se da tradição positivista, não mais é a continuidade das ciências do espírito que imitam as ciências da natureza: “Diz respeito a um ser junto ao ser, anterior ao encontro de entes particulares”[xlii]. Coloca em frente do processo cognoscente a presença do interprete de seu objeto, como traço ontológico. O compreender torna-se um aspecto de um projeto do ser, de uma abertura ao ser. E a questão da verdade não é mais adequação e método, mas manifestação, presentificação do ser, para um ser cuja existência consiste na compreensão do ser mesmo.

Este método confere um problema de inteligência de textos, não com o enfoque semântico mas com a ótica reflexiva, que parte de Schleiermacher e passa por Dilthey, que vê os textos como expressões da vida fixada pela escrita, através de conexões psíquicas e de encadeamentos históricos, pois o símbolo é uma estrutura de significação em que um sentido direto designa por acréscimo outro sentido indireto que só pode ser apreendido através do primeiro[xliii].
A interpretação consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os diversos graus de interpretação implicados numa significação literal.
Símbolo e interpretação se tornam, assim, correlatos pois só há interpretação onde houver sentido múltiplo, e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos torna-se manifesta.
Assim toda hermenêutica é, no fim, compreensão de si mesma. Explicita ou implicitamente, a hermenêutica é a compreensão de si mediante a compreensão do outro, pois tal método se coloca como auto-reflexão na interpretação de texto. O máximo de interpretação ocorre quando o sujeito compreende a si mesmo compreendendo o texto. E, interpretando o lugar da literatura no conjunto complexo da sociedade moderna, o sujeito passa a ser o ser cujo ser é conhecer, esse traço ontológico que desvela no homem, questionando qual o papel do homem mesmo no panorama da sociedade de organização do complexo industrial-militar, pois se este é o    mundo do homem, passa a ser o mundo que utiliza o homem como meio-produto, que se sustenta no homem, onde o homem não é mais sujeito, mas objeto, onde não mais é fim, mas recurso de produção de uma riqueza alienada dos valores humanos.
Assim, o questionamento da ontologia da interpretação se coloca sempre que a existência é colocada a noção de sua coexistência ou existência social articulada com as forças mecânicas de uma tecnologia-científica que não coloca o ser do homem como base de seu desenvolvimento. Trata-se de ver se os sistemas econômicos e de produção de riquezas deixam algum espaço para a reflexão autocompreensiva, e que não seja esta atividade o tipo de proposição de uma burguesia que, entediada com a ociosidade em que vivia, ou traumatizada com as guerras mundiais devastadoras se põe a pensar em sua própria decadência, temendo o seu fim. A reflexão ontológica se infiltra, pois na interpretação sociológica, não compreendendo o social sem o existencial.
Para Schleiermacher a hermenêutica era a arte de evitar má compreensão. Linge diz que a hermenêutica “tem sua origem nas brechas da intersubjetividade”[xliv]. David Linge é o editor do Philosophical hermeutics de Gadamer. Nela, o passado tem grande poder no fenômeno da compreensão:
De acordo com sua definição original, hermenêutica é a arte de esclarecer e mediatizar por nossos esforços de interpretação o que foi dito por pessoas que encontramos na tradição. A hermenêutica opera todas as vezes que o que foi dito não é imediatamente inteligível[xlv].

Gadamer compreende o exercício da razão hermenêutica como uma dupla compreensão. Compreender não é para ele, uma mera repetição do conhecimento. Ele vê a razão hermenêutica postulada como dupla consciência, a partir de duas experiências de alienação que encontra na experiência concreta: a experiência da alienação da consciência estética e a experiência da alienação histórica. Quando o problema é o conhecimento de si esta dupla consciência se exerce no jogo da consciência/inconsciência. Assim, se o sujeito tem sede, e sede de um refrigerante, temos de considerar que há, por trás da sede real concreta da consciência, o resultado de uma incompreensão gerada pela propaganda, que é uma invasão na vida “privada” pela opinião pública. Assim, como alienação do julgamento estético, pode dar-se que o peso da autoridade condicione, por uma espécie de propaganda cultural, o julgamento do valor. A alienação da consciência política faz com que possamos considerar naturais os fatos que, vistos por olhos críticos, são realmente dolorosos de aceitar, mas com que estamos muito acostumados a ponto de julgá-los “naturais”.
Hermenêutica é a teoria ou arte da interpretação. Como arte “arte” inscreve-se numa tradição do último período da antigüidade, ou de mais longe, em que existia a chamada filosofia prática que viria até o final do séc.XVII e constituía o marco sistemático de todas as “artes” na medida em que estavam a serviço da “polis”[xlvi].
Filosofia ai significa “ciência”, isto é, incluía os conhecimentos objetivos e os conhecimentos da verdade, desde que não fossem adquiridos pela empiria do trabalho. A filosofia prática se opunha a filosofia teórica que abarcava a “física” (saber da natureza), a matemática, a teologia, a política. A oposição moderna entre teoria e práxis nada tem a ver com isso,
pois a teoria era uma práxis, o supremo nível da práxis.

“Práxis” pode ser explicado como o comportamento dos seres vivos encontra-se entre a atividade e o encontrar-se em um estado ou situação. O homem, além de uma práxis, dispõe de uma “prohairesis”, isto é, uma antecipação e escolha previa.
A delimitação da “práxis” humana envolve a ciência teórica (práxis suprema) e a “poiesis” (fabricação que se baseia no saber, base econômica da vida da pólis)[xlvii]
Portanto, a Hermenêutica, como teoria da interpretação, não é simplesmente uma teoria, mas ela esboçou sempre a exigência de que sua reflexão sobre a interpretação promova a práxis.
Por exemplo, diz Gadamer que a “Querelle des Ancies et des modernes” foi uma preparação para o despertar da consciência histórica moderna; e o Romantismo, que se converteu em pioneiro dessa consciência histórica, na volta as fontes originais. Assim, um dos grandes méritos de Heidegger foi desfazer a evidência e mostrar a maneira como o pensamento moderno sob o domínio do conceito de ser “esquecido” criou o nada claro conceito de consciência que representa o principio da filosofia moderna[xlviii].
A Hermenêutica põe a certeza iluminista em posição problematizadora. Pois questiona a evidência, recusa-se a explicar completamente um fato dado, a calculá-lo, a aprender a produzi-lo. “Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em si mesma”[xlix], a interpretação faz referência a finitude do ser humano e do seu conhecimento, pois mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado é perguntar pelos interesses que nos guiam. A Hermenêutica filosófica está mais interessada nas perguntas do que nas respostas. Só quando compreende o sentido motivador da pergunta pode começar a buscar uma resposta: temos de compreender o que se esconde por trás da pergunta:
Só teremos alguma probabilidade de compreender os enunciados que nos preocupam se reconhecermos neles nossas próprias perguntas[l].

— pois a vida se encontra numa espécie de equilíbrio entre nossos impulsos inconscientes e nossas motivações conscientes. Por isso, diz Gershom Scholem
a interpretação alegórica aparece espontaneamente toda vez que idéias novas entram em conflito com as de um livro sagrado que parecem contradizer, necessitando assim de um processo de conciliação[li].

Diz Scholem, no seu artigo “A significação da Lei na mística judia”, que
Muitos, e entre os espíritos cabalísticos os mais criadores adotaram este método, encontrado apropriada tendência a transmitir suas idéias pessoais, ao mesmo tempo que davam a aparência de que estas idéias saiam das Escrituras. Não é fácil sempre dizer num determinado caso se é a Escritura que verdadeiramente deu impulso à exegese, ou se ao contrário, a exegese é uma criação artificial, destinada a cobrir o fosso que separa freqüentemente da visão antiga das coisas da nova visão[lii].

Escrevendo sobre Scholem, Habermas diz que o filólogo na reflexão sobre seu objeto se transforma em teórico[liii]. A Hermenêutica se inscreve nos domínios do conhecer, assim como a política nos do agir, e a Estética nos do senti. É uma tarefa que vem de Kant que, no espírito geral da crítica, dizia que deve-se medir a capacidade do conhecer antes de se enfrentara natureza do ser[liv].
O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem[lv].

— isto é o psiquismo não pode ser atingido, mas podemos captar aquilo que ele visa. Husserl estabelecia que o psiquismo se caracterizava por sua intencionalidade, ou seja, por visar um sentido capaz de ser identificado, “O que sou para mim mesmo só pode ser atingido através das objetivações de minha própria vida”[lvi].
A compreensão da vida sô pode ser atingida quando a subjetividade se objetiva, isto é, na objetividade relativa das obras de arte, na religião e na filosofia é que a vida se exprime de modo mais completo. É nesse sentido que se reparam falar (que remete ao falante) e dizer (que se remete as próprias coisas ditas) de Heidegger.
Assim o texto é a mediação pela qual nos compreendemos à nos mesmos, através do “mundo da obra” de que fala Ricoeur. A interpretação se apropria de uma proposição de mundo que se encontra não atrás do texto, “como uma espécie de intenção oculta”, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre revela. “Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto”[lvii].





[i] ROSA, G. (1976), p.52.
[ii] Ibidem p.52.
[iii] BAKHTIN, M. (1981), p.98.
[iv] Ibidem p.98.
[v] ROSA, G. (1976), p.52.
[vi] BAKHTIN, M. (1981), p.10.
[vii] HEGEL, G.W.F. (1969), p.94.
[viii] ROSA, G. (1976), p.52.
[ix] Ibidem p.52.
[x] Goethe, w, (1981), p.121.
[xi] Ibidem p.121.
[xii] ROSA, G. (1976), p.82.
[xiii] Ibidem p.82.
[xiv] Ibidem p.81.
[xv] Ibidem p.81.
[xvi] Ibidem p.81.
[xvii] MORA, J.F. (1971), p.634
[xviii] PETERS, F.E. (1977), p.256
[xix] CUVILLIER, A. (1976), p.63.
[xx] MORA, J.F. (1971), p.634
[xxi] HERÁCLITO, (1980), p.137.
[xxii] NIETZSCHE, F. (1972), p.37.
[xxiii] HERÁCLITO, (1980), p.125.
[xxiv] ROSA, G. (1976), p.233.
[xxv] NIETZSCHE, F. (1972), p.37.
[xxvi] Ibidem p.37.
[xxvii] Ibidem p.37.
[xxviii] Ibidem p.36.
[xxix] ROSA, G. (1976), p.15.
[xxx] HERÁCLITO, (1980), p.85.
[xxxi] LORENZ, G. (1971), p.267.
[xxxii] Ibidem p.267.
[xxxiii] MEYER-CLASON, C. (1969), p.107.
[xxxiv] Ibidem p.107.
[xxxv] BESSIÈRE, I. (1974), p.29.
[xxxvi] Ibidem p.31.
[xxxvii] Ibidem p.35.
[xxxviii] Ibidem p.29.
[xxxix] RICOEUR, P. (1978), p.29.
[xl] Ibidem p.10.
[xli] Ibidem p.13.
[xlii] Ibidem p.12.
[xliii] Ibidem p.15.
[xliv] GADAMER, H. G. (1977), p.XII.
[xlv] Ibidem p.98.
[xlvi] GADAMER, H. G. (1983), p.57.
[xlvii] Ibidem p.60.
[xlviii] Ibidem p.68.
[xlix] Ibidem p.71.
[l] Ibidem p.73.
[li] SCHOLEM, G.G. (1956), p.46.
[lii] Ibidem p.46.
[liii] HABERMAS, J. (1980a), p.122.
[liv] RICOEUR, P. (1977), p.21.
[lv] Ibidem p.25.
[lvi] Ibidem p.27.
[lvii] Ibidem p.58.

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