2.3.1.2
– Libertação e Alienação
Embora
nascido na década anterior, Diadorim representa a individuação violenta e o
movimento de revolta da década posterior de 1960 que vai dos Beatles a
revolução dos estudantes parisienses passando pela contracultura e pelo
movimento hippye. Diadorim sai do sertão para um pórtico de universalidade que
só a “grande” literatura (e não a “trivial”) possui. As qualificações do texto,
seu valor formal na acusação e negação da realidade se baseia na transmanência
artística, no fato de que a arte se emancipa do social[i].
A arte cria mundo que vai negar ou acusar o outro, o mundo da realidade: o
compromisso político da arte parte de uma prévia alienação, a realidade é sublimada[ii]
como veículo de função crítica.
A transcendência da realidade
imediata destrói a objetividade reificada das relações sociais estabelecidas e
abre uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjetividade rebelde[iii].
Essa
“subjetividade rebelde” é a individuação máxima de Diadorim, a negar a
realidade na travessia da Terceira Margem. A “forma estética” é, portanto,
resultado da transformação de um dado conteúdo social “num todo independente”[iv].
A obra é assim extraída do processo constante da realidade e assume um
significado e uma verdade autônoma”[v](fechou parênteses, mas não
abriu) Representando a realidade de onde é extraída para tornar-se autônoma,
a arte denuncia a realidade de fora, através mais da forma do que do
conteúdo: É a forma que subverte “a sua contribuição para a luta de libertação
que reside na forma”[vi]
O problema estético é que o real é
definido a partir da desrealização da obra de arte. O monopólio da realidade é
quebrado para se questionar e se definir o que é real. “O mundo fictício da
arte aparece como a verdadeira realidade”[vii],
já que nesta os indivíduos se acham alienados.
A arte empenha-se na percepção do mundo que aliena
indivíduos da sua existência e atuação funcionais da sociedade — está
comprometida numa emancipação da sensibilidade, da imaginação e da razão em
todas as esferas da subjetividade e da objetividade. A transformação estética
torna-se um veiculo de reconhecimento e acusação. Mas, essa realização
pressupõe um grau de autonomia que desvia a arte do poder mistificador do dado
concreto e a liberta para a expressão da sua própria verdade. Enquanto o homem
e a natureza não existirem numa sociedade livre, as suas potencialidades
reprimidas e distorcidas só podem ser representadas numa forma alienante. O
mundo da arte é o de outro Princípio da
Realidade, da alienação — e
só como alienação é que a arte cumpre uma função cognitiva: comunica
verdades não comunicáveis noutra linguagem; contradiz[viii].
A posição de Diadorim definida para a
vingança da morte de seu pai, a ambigüidade de sua condição, seu direcionamento
para a morte, tudo o leva a uma condição alienante. O exercício de liberdade é,
nele, uma condição de alienação: “só como alienação a arte cumpre sua função
cognitiva”. Diadorim é, portanto, mais vítima (portanto mais alienação) do que
herói (do que progresso). Sua condição romântica e travestida atesta um alto
grau de negação do real (embora Diadorim esteja verossímil no romance), mas é o
romance como um todo que é transreal, que se aliena do monopólio da realidade.
Na contextualidade do mundo ficcional do romance, a libertação tem como preço a
morte final (que a culpa é sempre certa, disse Kafka), como morte-suicídio,
como procurada e sabida (tal como a de seu irmão Aquiles). Nossa morte não é
trágica, pois inconsciente algo vago e adiado. A catástrofe inconciliável é a
morte com data marcada, a morte querida, conhecida. E Diadorim já se sabia
morto, privado de ser: não-ser: nem podia assumir sua verdadeira natureza, nem
negá-la. Diadorim superou sua morte, sua negação. Na superação de si próprio
reside seu maior protesto, como superação da realidade, como alienação revolucionaria
libertária. “Carece não ter medo” significa, aí “carece morrer” (que a culpa é
sempre certa). A superação da norte revoluciona a realidade porque se choca com
nossa natural sede de viver. Fomos programados para viver, assim como fomos
programados para ser controlados (não para o controle). A individuação violenta
de Diadorim parte da subversão desta ação volitiva em prol do superar da
consciência política. A violência se organiza para que a racionalização, o
controle e a repressão engendre uma violenta auto-repressão, como a de
Diadorim. A superação desta auto-repressão só se dá na morte certa. Antes a
ruptura da destinação dos deuses no Olimpo, agora a ruptura dos dígitos dos
computadores. A morte é subversiva, embora alienante. E a arte subverte com
esta alienação. A morte é a negação da vontade de segurança individual, a
quebra dos eixos do condicionamento. A morte é a superação por antítese da
consciência comunicativa e da consciência política. A morte mata a ironia, mata
a tragédia (antes da solução cômica). A morte antecipa o irresoluto. Somos
prisioneiros (diz a morte) do sistema de vida que nos foi dado pronto. Nada
somos (embora é o todo que desejamos): “Não somos nada, tudo é que procuramos”
diz Hoelderlin. Temos de tentar ouvir nossa determinação e nossa esperança.
Por outro lado, visto que não apenas não somos
experimentados em tal ouvir, mas temos sempre os ouvidos cheios do que nos
impede de ouvir corretamente”[ix].
— por isto existe a arte. Já dizia Croce:
...a arte é visão ou intuição. O artista produz
uma imagem ou fantasma, e o que gosta da arte dirige a vista ao sitio que o
artista 1he assinalou com os dedos, e vê pelas janelas que este lhe abriu, e
reproduz a imagem dentro de si mesmo[x].
E as janelas que Diadorim abre dão
para o vazio inevitável, subversivo porque descondicionante, o “vazio
habitável”de que falou Barthes. A morte de Joca Ramiro aparece como necessária,
esperada, graças ao fatalismo nihilista do jovem Diadorim, posto em situação de
superação do código. Sua emancipação não poderia deixar de ser trágica.
Diadorim sabe de sua condição anormal de mulher travestida de jagunço, situada
fora daquela linha que caracteriza a transgressão da condição humana. Sua
paixão é a sua alienação guerreira, sua paixão é sua queda. Sua paixão põe em
risco o código, programado por seu pai (Diadorim é mais filho do Pai de “A
terceira margem do rio” do que filho de Joca Ramiro): o risco da
transmarginalidade da Terceira Margem do Rio que põe em risco o totalitarismo
do todo controlado. A paixão é incodificável. Não é previsto o recurso à
paixão: Por isso Diadorim faz com sua morte a superação da reivindicação dos direitos
da paixão. Diadorim é força bruta, a força instintual, da animalidade revoltada,
a força bruta da natureza indomável.
O caráter afirmativo da arte tem ainda outra
origem: é o empenhamento da arte no Eros, a afirmação profunda dos Instintos de
Vida na sua luta contra a opressão instintiva e social[xi].
Não é bem a morte que é posta em questão,
mas a forma como a morte é posta em arte. A concreticidade da morte (“Não há
morte, só há Fedra moribunda” diz Goldmann), a morte artística é a morte posta
autônoma, a morte alienada na dimensão estética da obra, a morte objetivada no
personagem. É a morte artisticamente estilizada. Não é apenas a morte, mas a
Morte na Arte! Essa sim que tem força de propor mudar a realidade. A libertação
só é possível se a destruição e a violência puderem ser rompidas. A liberdade é
o tema básico de toda grande arte. Toda grande arte opera a partir de
uma determinação libertária. Não há arte sem liberdade. A libertação é um
pressuposto apriorístico da arte.
Entretanto, a arte é pessimista. Toda
grande arte é pessimista. Assim como a arte trivial é agradável e otimista.
Como a propaganda é otimista. O pessimismo da arte reside no fato de que a
libertação não tem exemplo atestado na História, nenhum fato verídico. Nenhuma
sociedade se libertou outrora. Será a liberdade um projeto condenado sempre ao
túmulo do futuro? Existirá a liberdade sempre teologicamente apontada a um
eterno porvir? A arte é pessimista, não raro entremeada do risco da comédia.
Toda arte tem uma ponta trágica. Mas o pessimismo radical da arte não é
“contra-revolucionário”: serve para advertir contra a consciência feliz e
alienação. Esse pessimismo impregna até a arte que tem a revolução como tema
(como é o exemplo da peça de Büchner e o filme Waydja, A morte de Danton).
A arte por isso não pode representar apenas os interesses da classe
trabalhadora, pois supera a consciência de classe. O subjetivismo da arte não
pode ser acusado de burguês. A arte, desde Aristóteles é considerada no seu
pendor para o universal. Sempre alienada, mas nunca reacionária. Não há grande
arte reacionária, porque toda arte é por força de sua própria definição uma
revolução superadora. Fora das determinações de classe ela visa uma sociedade
sem classe porque não tem consciência de classe. Ter consciência de classe
(mesmo operária) sempre é ajustar-se numa sociedade dividida em classes. A arte
vê a humanidade como um todo orgânico universal, visiona a humanidade concreta
(mesmo se si considera classe operária como a “classe universal”). A arte
radica numa natureza anterior a consciência de classe. Por isso, a arte de Grande Sertão: Veredas radica seus impulsos primários Eros
e Thanatos, na sedução do seduzido, na sexualidade e assexualidade, no desejo,
no Pacto, no ódio e na paixão. Os instintos básicos têm base subversiva, uma
energia destrutiva e agressiva altamente redentora da narcotizada sociedade
controlada. Principalmente dentro do ideário revolucionário da década de 60. (Grande Sertão: Veredas pode ser visto por esta ótica),
dentro dos programas libertários da década de 60. O homem não está só condenado
a liberdade, como disse Sartre, como também a liberdade lhe é roubada no mesmo
ato de liberação. Sejamos realistas, diziam os estudantes de Paris, queiramos o
impossível. Esta frase poderia ser dita por Guimarães Rosa. Pois a liberação
instintiva está na base de uma mudança do sistema de necessidade. Rosa não está
afastado de Marcuse, por sua época. Por isso o termos de tomar a estética de
Marcuse para a hermenêutica de Diadorim. Diadorim é a Droga.
A arte é autônoma, “e independente” da
realidade: mas a realidade continua presente no mundo autônomo da arte como
“matéria-prima” para a representação. E a arte se transforma nesta
representação. A sociedade na obra, transforma-se num campo de possibilidades
disponíveis, possibilidades da libertação. Para um dos maiores romances do
limiar da década de 60, só pode haver uma estética revolucionária. Não há
classe oprimida na década de 60, época do capitalismo avançado: só há opressão.
De todos. E como arte é forma, o caráter revolucionário da arte não está no que
diz, mas no como diz aquilo que é dito.
O protesto “secreto” desta literatura
esotérica reside no ingresso das forças erótico-destrutivas primárias que
destroem o universo normal da comunicação e do comportamento. A sua verdadeira
natureza é associal, constituindo uma rebelião subterrânea contra a Ordem
social. Portanto esta literatura revela o domínio de Eros e Thanatos para além
de todo o controle social, invoca as necessidades e as satisfações que são
essencialmente destrutivas[xii].
Por
isso Diadorim aparece na nossa leitura tão destruidor. Diadorim, de múltiplas
mortes. Mata quem matou seu pai: quem matou seu criador; e como era criatura
criada para um determinado fim destrutivo (para por exemplo matar Hermógenes),
Diadorim é um robô rebelado; o monstro matou o medico que o criara: o programa
matou o programador; vazio negativo, o nada habitável revolta-se contra o pai
do sistema controlador e manipulador, Diadorim também, e por isso mesmo mata
quem matara antes; mata seu pai que o mata antes, destituindo-lhe da vida
biológica dos instintos; Diadorim mata quem matara a mulher Diadorina; Diadorim
se vinga; matando o Hermógenes, Diadorim mata seu próprio pai por uma estranha
metonímia; não podendo exercer a agressividade de sua violência contra o objeto declarado, exerce-a sobre um objeto escamoteado e
transferido: Hermógenes; sua vingança é tríplice: vinga o pai, vinga a si mesmo
e se vinga na sua própria morte (pois Diadorim se mata matando); a tragédia de
Diadorim assiste a uma sucessão de mortes. A morte ai desvenda certas
Zonas interditas da natureza e da sociedade em que
mesmo a morte e o diabo se incluem como aliados na recusa de se submeterem a
lei e a ordem de repressão[xiii].
A arte
desmistifica a realidade separando-se da racionalidade visando a um fim que
caracteriza o modo de produção material. Desafia a realidade. Desafia o
monopólio da realidade em definir o que é “real”, e esse desafio é feito
criando-se um mundo fictício, portanto alienado e que, no entanto, acaba por
ser mais real do que a própria realidade. A arte tem o seu próprio mundo e
ilumina este mundo a partir desta ficção. Além disso, a arte mergulha numa
dialética de afirmação e negação da realidade. Diz Marcuse que os personagens
de Shakespeare e de Racine transcendem o absolutismo, os burgueses de Balzac e
Stendhal transcendem a burguesia, os pobres de Brecht transcendem o mundo do
proletariado. A injustiça não se dá como injustiça de urna determinada classe
mas da humanidade como tal. Diadorim é o representante moderno do Édipo Rei,
pois Édipo foi o primeiro representante desta culpa inocente que se encontra na
grande literatura. A culpa de Édipo é a culpa de Diadorim, mesmo escamoteado
nas veredas do sertão para alienar-se de um sistema tecnicamente totalitário,
em que as máquinas operam como maquinismo de controle e como maquinismo de
destino. A culpa revela os resíduos
de uma natureza por conquistar. A natureza totalmente controlada privaria o
controle de sua função controladora, de seu termo, pois o controle só se da em
termos de resistência.
A qualidade e o valor estético-literário
de Diadorim reside, pois, na individuação social que realiza. Diadorim
transforma os conflitos de massa em seu destino pessoal. O mundo ficcional e o
mundo da realidade colidem, “possuindo cada qual sua própria verdade. A ficção
cria a sua própria realidade que permanece valida mesmo quando negada pela
realidade estabelecida”[xiv].
Diadorim luta contra essa privatização da
programação tecnológica da alma, contra essa introjeção da dominação
totalitária, contra o condicionamento sistemático da sociedade de Estado
Cientifico, contra a definição da vida como programa e como trabalho. Pois:
O capitalismo avançado constitui uma sociedade de
classes como um universo administrado por uma classe monopolista corrupta e
poderosamente armada[xv].
Somente quando a arte obedece à sua
própria lei de autonomia contra a realidade é que ela não só preserva a sua verdade como também torna consciente
a necessidade de mudança, pois ela não pode mudar o mundo, mas mudar as
consciências, e falar é agir. Diz Marcuse:
O movimento dos anos sessenta levou uma
transformação radical da subjetividade e da natureza, da sensibilidade, da
imaginação e da razão. Abrir uma nova visão das coisas, permitiu o ingresso da
superestrutura na base. Hoje, o movimento está enclausurado, isolado, na
defensiva e uma burocracia esquerdista embaraçada apresenta-se a condenar o
movimento como elitismo intelectual, impotente”[xvi].
Neste
sentido, o povo é uma minoria intelectual militante, uma estranha “elite”. O novo
marxismo fala do povo, em vez do “proletariado”. Mas, que é o povo, pergunta
Marcuse. Esta tendência exprime o fato de, sob o capitalismo monopolista
moderno, a população explorada ser maior do que o operariado, abrangendo as
classes médias anteriormente independentes. Por isso, tendo em conta a
narcotização da massa, a palavra “elite” pode ter hoje um conteúdo radical. Se
a arte perder a sua autonomia, perderá a sua própria dimensão transformadora. E
a luta se dá hoje entre arte e tecnocientificismo, entre mundo dominado e mundo
libertado. Mas a arte se opõe à práxis política, porque tem seu caminho
próprio. Desenvolvemos estas teses de Marcuse para rebater as críticas que se
fizeram contra Grande Sertão: Veredas, acusado de burguês. Disse-se que
Riobaldo era burguês (e burguês aqui significa reacionário). A revolução
artística supera também estas dimensões: burguesia e operariado. E mais:
acreditamos que, sob o capitalismo de serviço (exceto no Terceiro Mundo) , essa
diferença de classe tende a desaparecer, aparecendo em seu lugar a grande massa
indistinta e descaracterizada, que cumpre livrar tanto do capitalismo
monopolista, quanto do socialismo totalitário. Trata-se de salvar a subjetividade
e a interioridade salvar da morte. A subjetividade não é uma exclusividade
burguesa, pois operário também tem alma. O capitalismo mudou totalmente esses
conceitos.
A “fuga para a interioridade” e a insistência numa
espera privada podem servir como baluarte contra uma sociedade que administra
todas as dimensões da existência humana A interioridade e a subjetividade
talvez venham a tornar-se o espaço interior e exterior da subversão da
experiência, da emergência de outro universo[xvii].
A fuga para a interioridade passa aqui a
ser fuga para o sertão. Diz mais.
A solidariedade e a comunidade não significam a
absorção do indivíduo Originam-se antes na decisão individual autônoma: unem
indivíduos livremente associados, e não massas.
Se a subversão da experiência própria da arte e a
rebelião contra o principio da realidade estabelecida contida nesta subversão
não puder ser traduzida para a práxis política e se o potencial radical da arte
reside precisamente nesta não-identidade, então, levanta-se a questão: como
pode este potencial encontrar representação valida numa obra de arte e como
pode tornar-se um fator de transformação de consciência?[xviii]
Como pode a arte falar o discurso autônomo
e como pode, com este discurso, representar a realidade? Por isso, Grande Sertão: Veredas é uma “auto-reflexão irracional” A arte não veicula a experiência de uma
classe oprimida, mas de todos os oprimidos por todos os sistemas de opressão,
mesmo os mais sutis (que são os mais radicais). A arte não escolhe um campo
determinado, onde preservar a sua autonomia. Nem ocupa uma área cultural ainda
não ocupada pela sociedade tecnocientífica (como é o caso da produção pornô). A
arte faz parte do mundo que denuncia sua autonomia parte da realidade concreta,
com a qual estabelece laços de consolidação (no sentido de dar solo). A
autonomia da arte só se da do ponto de vista da autonomia da nova consciência
que ela faz brotar, na nova percepção da realidade que ela faculta. Ela faz a
mimese desse distanciamento estético (conceitos clássicos) intensificando a
percepção, distorcendo propositadamente a realidade, tensionando o discurso com
suas promessas de liberdade. A liberdade é o fim de todo poder, portanto
elemento catártico, só conseguido após uma tensão extrema.
Se a arte fosse prometer que, no fim, o bem
triunfaria sobre o mal, tal promessa seria refutada pela verdade histórica. Na
realidade, é o mal que triunfa, e apenas existem ilhas de bem onde nos podemos
refugiar durante algum tempo. As verdadeiras obras de arte têm disso
consciência; rejeitam as promessas fáceis; recusam o aliviante final feliz. Devem
rejeita-lo, pois o reino da liberdade fica para lá da mimese. O final feliz é o
“contrario” de arte[xix].
E “a realidade não oferece promessas, mas
apenas ocasiões”[xx].
Quando se fala de nossa época,
costuma-se dizer que ela é a de mundo fragmentado, isto é, que se assistem a
uma desintegração da realidade, que torna impossível qualquer tentativa de
apreensão total. Entretanto há aí uma contradição, diz Marcuse:
Experimentamos, não a destruição de cada todo, de
toda a unidade, de todo o significado, mas antes o domínio e o poder do todo, a
unificação sobreposta, administrada. A catástrofe não é a desintegração, mas a
reprodução e a integração do que existe[xxi].
A época é fragmentada, mas a tendência e,
por isto mesmo, totalitária. O totalitarismo administrativo tende, inclusive, a
diminuir e facilitar a grande arte em arte trivial, facilitando o texto,
degenerando sua força revolucionária, comercializando-a para a massa, naturalizando
a força de seu impacto e (aí sim) aburguesando a recepção de seu gosto. Mas nas
excelências estranhas da forma é que reside a negação da sociedade repressiva,
já que forma estética e participação política se identificam.
Assim, o mundo fictício da arte contém
mais verdade do que a realidade cotidiana mistificada pela instituição da
necessidade natural. É a realidade concreta que parece falsa, ilusória,
enganadora.
A lógica dialética pode fornecer um significado e
uma justificação a estas pretensões. A sua verdade materialista assenta na
análise de Marx da divergência da essência e da aparência na sociedade capitalista[xxii].
A arte tem necessidade de afastar-se da
realidade (para o sertão, por exemplo) porque só pode representar o sofrimento
concreto da realidade, sujeitá-lo à forma estética. Por isso, afastar-se do
real, para o distanciamento (estético) De seu lugar a arte “recorda-se” da
realidade, a1ém de criar as imagens de outra realidade nos domínios do
possível, na trans-história. Pois o possível está sempre apontado do fundo do
pessimismo artístico (ou da ironia do riso da comédia). Mas o pessimismo da
arte não é totalmente autodestrutivo. A morte se dá por amor a vida. Permanece
no mundo da ficção, mas corrige sua idealidade, pois o Belo é neutro (o horror
é “belo”), isto é, o Belo é o resultado do impacto que a arte produz, resultado
este que promove uma mudança de consciência. O Belo é neutro e sensual. E a
luta artística se dá pelo tato de que “o mundo não foi feito por amor ao ser
humano”[xxiii]
e a teoria revolucionária da arte adquire sempre um caráter abstrato, como luta
pelo impossível. Ser revolucionário é lutar pelo impossível. A arte não obedece
ao princípio da realidade estabelecida, mas ao princípio da negação, que não é
mera negação, mas transmanência da realidade, a preservação que
transcende a imanência, que transpõe o passado e o presente para a luz de um
futuro que, utópico e inatingível que seja, sempre é o moto da realização. “O
horizonte da historia ainda está aberto”[xxiv].
O século XX, que começara em 1914,
terminou na década de 50. O novo século se inicia a partir de 60, e Grande Sertão: Veredas o atesta. Assim como Marcuse ainda é
o grande pensador deste período. Se Oswald de Andrade pode ser visto pela ótica
de Benjamim, Guimarães Rosa o pode pela de Marcuse. Diadorim aparece, nesta
ótica, como um estudante parisiense.
2.3.2 - O Rio e o Rei
Como vemos a sociedade em permanente
mudança, em continua renovação da norma, estas modificações “revolucionárias”
da sociedade se refletem no que chamamos aqui de fantástico. Por fantástico compreendemos estas modificações, desvios, alteridades,
paralelismos e ambigüidades que, não
quebrando radicalmente a norma, problematizam-na
e a colocam profundamente em questão, desequilibrando-a: o caso da ambigüidade
do Pai de “A terceira margem do rio” e de Diadorim, do pacto com o Diabo (o que
é e não é) Não há total rompimento da norma, porém há um envolvimento, um
clima, um estranhamento, uma tridimensionalidade insuspeitada que promove um
sério e revo1ucionário sentido, um redimensionamento da norma, colocando a
própria existência da norma em duro questionamento. Não a violenta, mas a
transforma. Essa transformação da própria norma, sem perda da coerência
normativa, sem perder de vista as duas margens da norma, e muito mais radical
do que o puro rompimento, a simples violentação: pois a norma tem de digerir
uma nova dimensão dentro de seus limites uma nova margem imprevista, entre seus
marcos já existentes. é uma superação.
Utilizamos “A terceira margem do rio”
devido a isto: exemplo máximo do que há para ser dito. Pois o fantástico é realmente
dialético, em lugar de quebrar a norma, transforma-a num processo de superação.
Todo nosso interesse pela dialética, aqui revelado, é devido a finalidade de
compreender as transformações da norma pelo fantástico (tal como o definimos)
de Grande Sertão: Veredas. E demonstraremos no fim, que Deus é
dialético. Não só o Diabo. E trataremos o fantástico como esta estética do absurdo
dialético de Deus e Riobaldo.
Nas obras de Proust ou de Virginia Woolf, de
Thomas Mann ou de Dos Passos parece com efeito que o “individualismo” do
personagem ou do narrador tem algo que não pode mais ser considerado do
indivíduo — dos membros de um grupo: seu apego ao Eu como ao único valor humano
autentico prova que eles são personagens que não têm mais, para o autor, a
sociedade balzaquiana, onde o individuo estava para o social como a palavra
está para a frase[xxv].
Hoje esse “individualismo” visa melhor
salvar o sujeito do que negar o objeto, ou fugir da realidade. Riobaldo é uma
individuação simbólica:
É que o individuo romanesco,seja ele destinado a
olhar exatamente a realidade social ou ao contrario a dissolve-la, guarda
sempre uma natureza de símbolo, nos dois sentidos complementares do termo
síntese dos signos distintivos, e imagem (projeção imaginária) desta síntese[xxvi].
O personagem assim fica sendo um efeito
desta pratica social. E no 1imite do imanente-transcendente, do ser-e-não-ser
no sujeito-produto-objeto é que se coloca o problema do convívio tecnocrático
da modernidade. “O indivíduo é ao contrário o efeito e não o produtor
(consciente ou não) de tal ou qual prática social”[xxvii].
No romance a individuação é um símbolo (e
espelho) do social. Reflete a realidade e resume seus problemas suas
contradições. Quanto mais o escritor o trata com particularidade, quanto ao
problema individuante quanto mais dá-lhe uma imagem única e solitária, tanto
mais deixa ver através dele os problemas de classe e de ideologia. Essa, a
dialética do romance.
Por isso, a imagem demoníaca, no seu
sentido arquetípico, é a parodia da sociedade.
Um dos temas básicos das imagens demoníacas é a paródia,
que arremeda a exuberante peça artística sugerindo sua imitação em termos de
“vida real”[xxviii].
O demoníaco é a antítese do tecnológico,
da ordem produtiva, do todo organizado.
O mundo divino demoníaco personifica os vastos,
ameaçadores, brutos poderes da natureza, como surgem a uma sociedade não
desenvolvida tecnologicamente[xxix].
Daí o pacto, nas veredas cruzadas do
Sertão por Riobaldo. O problema da individuação em contraste com o
totalitarismo do todo é um problema demoníaco.
O mundo demoníaco é uma sociedade unida por uma
espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao grupo ou ao chefe que
diminui o individuo ou, no melhor dos casos, contrasta seu prazer com sua
obrigação ou honra[xxx].
As imagens, assim, do canibalismo são
paródias demoníacas. A anatomia de Diadorim é demoníaca, e a fusão a síntese de
um problema dialético, a superação das contradições sociais personificadas por
um personagem. Diadorim é o choque do desejo (que revoluciona) com a ordem (que
reage). Diabo Diadorim é a ambigüidade da Terceira Imagem, como resposta e como
paródia da ordem estabelecida, dos poderes constituídos, do totalitarismo
instituído. Diadorim é só veredas, não é uma estrada traçada, trafegável. Nessa
absurdidade, nessa ambigüidade reside seu problema fantástico, seu realismo, o
isto é, o aspecto espetacular ou visível do drama, o aspecto idealmente visível
ou pictórico de qualquer literatura.
A relação erótica demoníaca torna-se violenta
paixão destruidora, que age contra a lealdade, ou decepciona aquele que a possui
geralmente simbolizada por uma rameira, bruxa, sereia ou outra mulher
tentadora, um alvo físico do desejo, que e buscado como posse e portanto não
pode jamais ser possuído A paródia demoníaca do casamento, ou da união de duas
almas numa só carne, pode tomar a forma do hermafroditismo do incesto (a
modalidade mais comum) ou da homossexualidade[xxxi].
Assim, a relação social é Diadorim,
dialético, demoníaco, “unido por uma espécie de tensão molecular de egos” A
transposição disto se dá no fantástico salto qualitativo da Terceira Margem, no
risco da paródia, na fusão do hermafroditismo do nos poderes não codificados da
natureza em estado bruto, nos problemas não resolvidos de classe e de
ideologia: Em uma palavra, no fantástico que atesta que, neste mundo,
nada é permanente, nada é
pleno, e nada está resolvido. Pois a totalidade é o resultado da superação das
contradições anteriores, que provoca novas fases contraditórias como germe de
novo estado contraditório nunca resolvido, infinitamente por fazer-se. É isto o
que o fantástico simboliza. A capacidade infinita de a realidade se abrir em
novas possibilidades imprevistas e em novos problemas a serem colocados. As
posturas e situações iniciais no devir
desse “materialismo dialético são retomadas infinitamente. É a glória de Deus e
a miséria do homem. Por isso, “Deus é traiçoeiro” diz Riobaldo. Acreditamos que
ficou claro, então, a relação que estabelecemos entre o fantástico e o
dialético, isto é o núcleo dialético-fantástico. Pois o fantástico e a
ambigüidade que se estabelece a partir das determinações de superar as
contradições da realidade, não no sentido de chegar a totalidade superativa dos
antagonismos iniciais mas explicando um símbolo (o fantástico) em que se
resolvam as limitações antagônicas sem resolvê-las “às claras” E, mesmo na
síntese superativa, resultante dos antagonismos das premissas já se colocam os
germes de uma nova determinação (ou indeterminação) que germinarão em outra
situação contraditória, na nova situação do futuro.
A Terceira
Margem do rio é uma superação, mas não no caminho do fantástico. A Terceira
Margem não explicita a superação, não resolve o problema, não o supera lógica e
dialeticamente. Ao contrário complica-o. Desta complicação, o problema se
apresenta aumentado e novo, outro, acrescido de um novo obstáculo, visto por
outra insuspeitada ótica. A Terceira Margem é nossa elaboração
dialética-fantástica. A Terceira Margem não “naturaliza” o problema
contraditório, mas equaciona-o de nova maneira. Nela, na Terceira Margem, o
problema não é resolvido matematicamente, mas esteticamente, literariamente.
Não se quebra a norma, mas a norma não é a mesma para sempre, é colocada e
vista por uma nova maneira de ver ao mesmo tempo normal (da norma} e anormal
(do fantástico) Nesta surpresa reside a arte. Arte é o que espanta no que surpreende.
Arte é esta surpresa. O espanto da arte é sua beleza, a nova forma de ver o que
é visto. Arte é esta novidade. A realidade é vista sem alteração, mas
radicalmente alterada. Nessa transmanência da realidade é que reside a arte
literária. Não é o irreal, mas o real que surpreende. Surpreender o real, eis o
papel da arte. Esta surpresa impõe uma dialética própria, a lógica fantástica
da imaginação produtiva, artística. A superação transmanente (como a nomeou Eduardo
Portella). Transmanente é transposição da imanência sem sair dela, sem
desrealizar a realidade, sem deformar o quadro da realidade. Transmanência e a
capacidade de descobrir os signos ocultos da realidade, seus sentidos
profundos. Desvelar a profundidade que há na simples aparência do que aparece,
eis o papel da arte, seu papel crítico.
Como síntese, a
alegoria e também esta imagem e projeção imaginaria da realidade na dialética
da paródia, unida pela tensão das contradições. Este problema é o que se refere
ao aspecto dialético do fantástico.
Pois o
fantástico, tal como o entendemos, pode ser considerado como ambíguo, mas
também pode ser considerado como dialético, no sentido de expor os contrastes
das várias determinações da realidade. E a dialética da realidade é em suma, a
dialética do romance. Por isso, aqui expomos uma teoria social da violência,
como poderíamos tentar uma teoria social do romance, isto é uma teoria que tem
sempre em mente a leitura do romance e tendo em conta que o que se passa na
sociedade é o que se passa no romance, ou melhor, o que se passa no romance revela o que se passa na sociedade. E
também vendo que o indivíduo é a sociedade, e que embora a sociedade moderna
tenta dissolver o individuo, no individuo moderno ela se revela, mesmo (e
principalmente) que este indivíduo tenha sido reduzido a um produto industrial.
Pretendemos chegar a dialética do Sertão
(as veredas do sertão) que em Grande
Sertão: Veredas, como lugar privilegiado de criticar a
sociedade urbana. Este é um problema de teoria estética, que pretendemos
resolver.
Pois o sertão não é só a antítese do
urbano, mas a lógica do sertão é a superação da diferença entre o urbano e o
sertão. A lógica do sertão não é o contrário da tecnologia do Poder urbano, mas
sua “superação” estética, artística. Chegaremos a ver como isto se dá na parte
final deste trabalho.
Outro problema que se impõe é que aqui
consideramos como fantástico aquilo que se passa em Grande Sertão: Veredas. Não nos preocupa a questão se este
é o mesmo tipo de fantástico que ocorre em Cem
Anos de Solidão, de Gabriel
Garcia Marques, ou n’O Reino Deste Mundo de Alejo Carpentier. Não nos
propomos a estudar o romance latino-americano, mas um só: Grande Sertão: Veredas. Limitamos nosso estudo a este
texto, assim como limitamos nossa teoria social aqueles aspectos que nos
interessam mais necessariamente.
[i] MARCUSE,
H. (1981), p.19-20.
[ii] Ibidem
p.20.
[iii] Ibidem
p.20-21.
[iv] Ibidem
p.21.
[v] Ibidem
p.21.
[vi] Ibidem
p.21.
[vii] Ibidem
p.22.
[viii]
Ibidem p.22.
[ix] HEIDEGGER, M.
(1969), p.169.
[x] CROCE,
B. (s/d), p.22-23.
[xi]
MARCUSE, H. (1981), p.23.
[xii] Ibidem
p.31.
[xiii]
Ibidem p.32.
[xiv] Ibidem
p.37-38.
[xv] Ibidem
p.42.
[xvi] Ibidem
p.43.
[xvii]
Ibidem p.48.
[xviii]
Ibidem p.48.
[xix] Ibidem
p.55.
[xx] Ibidem
p.56.
[xxi] Ibidem
p.57-58.
[xxii]
Ibidem p.62.
[xxiii]
Ibidem p.75.
[xxiv]
Ibidem p.79.
[xxv] ZÉRAFFA, M. (1971), p.37.
[xxvi]
Ibidem p.37.
[xxvii]
Ibidem p.38.
[xxviii] FREYRE, N. (1973), p.148.
[xxix]
Ibidem p.148.
[xxx] Ibidem
p.149.
[xxxi]
Ibidem p.150.
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