segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

2.3.3 - Do sertão futuro.

3.3.3 - Do sertão futuro.

O Grande Sertão: Veredas começa com Riobaldo matando o diabo. Ele ajuda a matar, num “bezerro branco, erroso... e com máscara de cachorro” o que ainda resta da subjetividade diabólica do sertão: Pois o sertão e o não-burguês estágio da magia do diabo, como força interna de magia. Riobaldo ajuda a matar o bezerro, empresta as armas. “Povo prascóvio”[i]. Mas o tiro não é “de verdade”, quando:
primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolera, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar casa de morador; e onde criminoso vive seu Cristo-Jesus, arredado do arrocho de autoridade. (p.9).

Como sempre, “lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”, onde “criminoso vive seu Cristo-Jesus, arredado do arrocho de autoridade”, lugar de liberdade de suas próprias forças, fora dos poderes constituídos. “Esses gerais são sem tamanho”, o sertão não tem fim, é mais em profundidade do que em extensão.. “O sertão está em toda a parte, não está 1á, além longe, mas dentro do espírito da lógica do sertão, da lógica demonológica.
“Uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz” (p.10). O fantástico não responde, vem:
“E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças:” (p.10).
Nomear é a presença! O sertão é o discurso. Dizê-lo é, pois o sertão está em toda a parte. Hoje Riobaldo se afasta, se aposenta. Como o Doutor, “é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos”, isto é, aburguesou-se na família e na propriedade privada dos textos santos. Pois até seminarista pode agora ajudar a extrair o Cujo, “do corpo vivo de uma velha. Não acreditei patavim” (p.10). Não crer é não fazer. Não crer é não ser. Não crer é uma forma solta, livre, de desestimular o mágico, O Cujo. Não crer faz a aparição do sertão desaparecer por completo. Pois.o sertão aparece, quando crente e nomeado. “O sertão está em toda a parte”. Não crer: “não sou amansador de cavalos”, é necessário esquecer nomes, para não crer: Treciziano, Hermógenes... “Quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?” (p.11).
Não nomear, não pensar. Talvez sofrer. Sofrer é não pensar com nomes, não nomear dolorosamente, não levantar o passado de seus idos.

Do primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos; Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, .estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e -não existe? (p.11).

Eis a ponta do novelo da narrativa (e do sertão) que aparece. “Mas, agora, :feita a folga que me vem”... Começa a “inventar”, isto é, a lembrar. A narrar. A puxar o sertão de novo para si. “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Pois o diabo é o rei do sertão. Alegórico e concentrado, ele é o ser-sertão mais característico. O sertão é o seu reino. E todo jagunço tem alguma de diabo.
Pois sertão não é lugar de homens, mas de jagunços, “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem” (p.11). Não vige no “cidadão”, no civilizado, mas “no homem arruinado”, no “homem dos avessos”. No jagunço. Na miséria. Na ruína. No inverso, no avesso. No sertão. Pois o sol da evidência não ilumina o sertão, mas o sol claro filtrado pela peneira da magia.
O homem não vige dentro do homem: Na superação literária os homens usam a narrativa de Riobaldo, para se convencerem de que o diabo não existe, e de que eles existem. O Doutor não acredita. Riobaldo fica agradecido, por isso.
“Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me: Sofro pena de contar não.. .“(p.11)
A superação existe no texto. O grande sertão, libertador, horizonte de alta magia, é o do texto. Não se trata de um problema geológico, geográfico, político. O espaço é o do mito, o da profundidade do mito. Tal mito está nos homens, nas plantas, até nas pedras.

Tudo. Tem até fortes raças de pedras, horrorosas, venenosas — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro deles dorme: são o demo. (...) Arre, ele está misturado em tudo (p.12).

Mas o sertão não é só o do diabo. A superação do sertão é contraditória. O amor também é sertão: “tudo é o não é... (p.12). O amor “vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos”, o amor é o “razoável sofrer” (p.12).

Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois — e Deus, junto. Vi muitas nuvens (p.12).

Tudo é e não é. É o sertão, sua superação. Como o Aleixo, “de maiores ruindades calmas”. é o sertão, “esse aborrecido mundo”. “Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão” (p.l2).
Tudo é incerto. “Compadre meu Quelemém reprovou, minhas incertezas” (p.13). O compadre tem religião civilizada. O sertão não. Na superação do sertão a lógica é a do amor ou da morte. Do bem ou do mal. Um passa para outro, quase sem mediação. O sertão é o lugar onde só se vive por meio da superação do fantástico. Tudo surpreende. Tudo é susto. “passarinho que se debruça — o vôo já esta pronto:” (p.13). “Aquele menino tinha sido homem” (p.14) — diz a lógica inversa. “Ave, vi de tudo, neste mundo: Já vi até cavalo com soluço.. .“(p.14).
Mas Riobaldo não procura as razões, as causas. Que na superação sertaneja não se dão certas. “Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (p.14). O sertanejo é sempre assim: “Sou um pobre coitado” (p.14).
A superação do sertão também é a das rezas. Da moral. Da “leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos”. De “raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo” (p.14).
Mas é a contradição viva de tudo, como tudo. Pois Riobaldo inventa um estágio de liberdade. De independência.

O senhor saiba: em toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa (p.15).

As aparentemente caóticas primeiras páginas do grande romance desenvolveram isto: a superação do sertão. O sertão-sertão, e o sertão de dentro: o Liso do Sussuarão. Os caminhos da vida, das veredas da vida.
O sertão não é o lugar

das pessoas de carne e sangue (...,) todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... (p.15).

O Sertão é como a subjetividade da loucura: “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco” (p.15). Só a “reza é que sara da loucura”. Por isso, ele paga Maria Leôncia para rezar um terço por dia para salvação de sua alma. Vai procurar outra, Izina Calanga, para trato igual. Pois “viver e muito perigoso...”.
Mas “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar” (p.16). Pois “Deus é paciência. O contrario, é o diabo” (p.16).
O senhor rela faca em faca — e afia — que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, e porque se merece e carece.(p.16).

Deus deixa tudo como está. Até que um dia (“bobo com bobo”), “algum estala e aprende: esperta. Só que as vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...”(p.16).
Do sertão só o jagunço (ou o ex) o entende. Quem não viaja de primeira, pode ser tido por “jagunço antigo”. Mas o poder também, lá, está tomado de sertão. O delegado Jazevedão viaja de primeira. Aquele homem
conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples Universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado (p.17).

Sertão não tem nada a ver com festa de São João, Bumba-meu-boi: o sertão é à bala. “A bala é um pedacinho de metal...” (p.l8). Sertão não é folclore. Sertão é sertão. E superação. Lugar ambíguo, cheio de “inocentes úteis” a serviço dos coronéis, dos políticos, do Poder. Mas vive a valentia de seus próprios mitos. “Porque este pequeno mundo do sertão, esse mundo original e cheio de contrastes é para mim o símbolo, talvez mesmo o modelo do meu universo”[ii],

Isso não somente soa assim, isto tudo, a vida inteira, a morte, isso tudo são, no fundo, paradoxos. Os paradoxos existem para que seja possível exprimir algo para o qual não existem mais palavras (p.274).

Rosa não era contra a lógica, defendia a superação. A lógica é a faca com a qual o homem ainda se matará um dia”.
Não há nenhuma contradição. O gênio é um homem que não sabe pensar logicamente mas prudentemente. A lógica é a prudência tornada científica, por isso não serve para nada. Ela negligencia componentes importantes, porque o homem não é apenas cérebro, quer ele queira, quer não. Eu diria mesmo que para a maioria dos homens, todos os escritores, incluindo eu próprio, o cérebro só tem um pequeno papel no decorrer da vida. Do contrário seria terrível; do contrário a vida inteira seria somente ainda um único grande cálcu1o matemático, que não seria mais preciso a aventura do desconhecido e do inconsciente e do irracional. Mas todo calculo tem sua solução, segundo as regras da matemática. Essas regras não valem para o homem, a não ser que não se acredite mais na infinidade e na ressurreição do homem. Eu acredito firmemente nisso. Por isso eu espero que uma literatura tão ilógica como a minha, transforme o Cosmos num sertão, no qual a única realidade seja o incrível. A lógica, meu caro, é a faca com a qual o homem ainda se matará um dia. Só quem supera a lógica pensa com justiça. Reflita pois uma vez: amor é sempre ilógico, mas todo crime é cometido segundo as leis da lógica (p.305).

Não há contradição: a arte não é lógica, mas “prudência” (política, talvez). Prudência científica. O homem não é (“apenas”) cérebro. O cérebro só tem “um pequeno papel no decorrer da vida”. E a vida não é “um calculo matemático”, sem a aventura do desconhecido e do inconsciente e do irracional” da superação do sertão. Por isso, uma “literatura ilógica”, que transforma o “Cosmos num sertão, no qual a única realidade seja o incrível”. A lógica não é justiça: “Só quem supera a lógica pensa com justiça”. A lógica está à serviço da dominação, da divisão, da implantação da ideologia dominante. “Amor é sempre ilógico, mas todo crime é cometido segundo as leis da lógica”.
Não há crime, no sertão. “Eles não sabem absolutamente o que é bom e o que é mau. Eles fazem com toda inocência o que nós chamamos “crime”, mas para eles não são crimes” (p. 306)

No sertão o homem pode encontrar-se ou perder-se. Ambas as coisas são possíveis. Corno critério ele só tem sua prudência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais. E assim se explica também aquele provérbio do sertanejo, que à primeira vista também soa corno um paradoxo, mas que designa uma verdade bem simples: o diabo não existe, por isso ele é tão forte. A gente também muitas vezes não encontra a palavra que sente dentro de si (p.306).

O diabo é a palavra. Às vezes não existe, por isso é de ferro. Por isso, Grande Sertão: Veredas é uma “autobiografia irracional’, “minha auto-reflexão irracional” (p.307)
O sertão (na Alemanha) é considerado “uma invenção sua” (p.307), invenção de Riobaldo. “Riobaldo é o sertão que se tornou homem” (p.308). É um “Raskolnikow sem culpa”, “provavelmente Riobaldo é somente Brasil” (p.309).
E Rosa chega a sua declaração mais forte: “Através de nós e conosco, a Europa teria talvez ainda um futuro, não apenas na economia, não apenas na política, também como fator de poder espiritual” (p.310). Através de nós, através do sertão.

No ano dois mil a literatura mundial será orientada para a América Latina; o papel que representaram uma vez Paris, Berlim, Madrid ou Roma, assim como Petersburgo e Viena, este papel representarão então Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O tempo do colonialismo acabou definitivamente. A América só agora começa a iniciar o seu futuro. Eu penso que será um futuro interessante, e eu espero que seja um futuro humano(p.310).

Por ora é sertão. “No mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado”[iii]. Por ora é alegoria na prosa roseana, é caos, não cosmos, “que esta minha boca não tem ordem nenhuma” (p.l9)

“Como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos”? (p.l9) “Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho” (p.20). A vida assim parece coisa absurda. “A gente nunca deve declarar que aceita inteiro o alheio — essa é que é a regra do rei” (p.2l). Porque: “Deus vem vindo: ninguém não vê” (p.21). Estes são trechos traiçoeiros, avassaladores, revolucionários. Nunca mais se acuse Riobaldo de reação. “E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza” (p.21). “Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir” (p.21). “Limpamos o vento de quem não tinha ordem de respirar” (p.21). “Para que eu quero ajuntar riqueza?” (p.22). “Vender sua própria alma...” (p.22).
Mas o sertão é bonito.

Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso... (p.22).

Este refrão (“viver é muito perigoso...”), como interpretá-lo? Será a vida uma ratoeira? Poderá dizer tudo o que pensa? Que perigos o ameaçam como narrador? Que insegurança narrativa? Que ameaças se sentem próximas?
Pois o sertão não é o bonito lugar? “Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores...”(p.24).
Sim, “os lugares sempre estão aí em si, para confirmar” (p.24). “De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra nelas” (p.27).









[i] ROSA, G. (1976), p.9.
[ii] LORENZ, G.W. & ROSA, J.G. (1971), p.272.
[iii] ROSA, G. (1976, p.18.

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