ROGEL SAMUEL
Rio de Janeiro, 1983
REESCRITO EM 2.000
Para Hanumam,
o Deus Macaco
SUMÁRIO
1 -
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INTRODUÇÃO
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2 -
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A QUESTÃO
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2.1 -
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Primeira parte: As formas da
objetividade
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2.1.1 -
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O homem e a coisa
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2.1.2 -
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Os serviços da razão
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2.2 -
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Segunda parte: Reconhecimento
crítico do impasse
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2.2.1 -
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Teoria social
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2.2.1.1 -
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A crise permanente
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2.2.1.2 -
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Racionalização
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2.2.1.3 -
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Controle e repressão
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2.2.1.4 -
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Condicionamento e
violência
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2.2.1.5 -
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Consciência política
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2.2.2 -
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Razão e irracionalidade
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2.2.3 -
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A crítica social
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2.2.4 -
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Arte e sociedade
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2.2.5 -
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Função literária
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2.3 -
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Terceira parte: A
recuperação da subjetividade
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2.3.1 -
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Estética da recuperação
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2.3.1.1 -
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Um problema hermenêutico
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2.3.1.2 -
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Libertação e alienação
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2.3.2 -
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O rio e o rei
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2.3.2.1 -
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O sujeito e o objeto
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2.3.2.2 -
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Diadorim
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2.3.2.3 -
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Recuperação trágica
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2.3.2.4 -
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Recurso à Terceira Margem
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2.3.3 -
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As veredas
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2.3.3.1 -
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Do sertão romântico
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2.3.3.2 -
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Do sertão pós-romântico
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2.3.3.3 -
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Do sertão futuro
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3 -
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CONCLUSÕES
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4 -
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BIBLIOGRAFIA
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5 -
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NOTAS
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Tudo que é
bonito é absurdo.
Riobaldo.
I - INTRODUÇÃO
À
medida que prosseguíamos a pesquisa de que resultou este trabalho íamos percebendo
que a subjetividade se reconstruía no sentido primeiro de uma resistência à objetividade da razão,
depois como reconstituição da
subjetividade perdida (do tipo reivindicatório dos direitos da paixão), para
sofrer a seguir um reencontro com
o sujeito esquecido pela sociedade industrial. No fim, entretanto, percebemos
claramente que desse reencontro passava-se para uma reconstrução da subjetividade rebelde, considerando-se que o
pensamento depois do fim da União Soviética
supera a dualidade de sujeito e objeto em fragmentações.
Essa
reconstrução superativa desestabiliza a própria noção de subjetividade, e dá à
condição subjetiva uma “dialética do fantástico”, isto é, aspirando a sair das
grades objetivas, porque constrói um mundo autônomo e verossímil para tematizar
a realidade(a sociedade), e recusando-se a ficar no “alienado” mundo subjetivo,
instaura uma sobredeterminação que não é mais nem sujeito nem objeto, mas é ela
mesma como crítica da possibilidade de abrir seu próprio espaço de emancipação.
A norma objetiva não foi recusada ali, do que resultaria uma visão aleatória de
um mundo inexistente. E as emoções do sujeito não foram controladas pela
racionalização visando a um fim. Nenhuma dessas duas margens do rio foi deixada
a descoberto. A terceira margem, porém, passara a constituir-se como forma,
como possibilidade de emancipação.
Portanto,
a metáfora da “terceira margem do rio” nos possibilitou mais uma vez compreender
“literariamente” o que se passava na sociedade, especificamente a brasileira,
com Grande Sertão: veredas.
De Grande Sertão: veredas vimos o homem
(ali Diadorim) e o mundo (ali o sertão). Como compreender esse homem e esse mundo
sertanejo sob a ótica do mundo internacional atual, Ocidental, o mundo do
capitalismo monopolista, estatal, científico, intervencionista, nesse complexo
industrial-militar de que não participa o sertão? No fundamento, vê-se que
interpretando o papel do sertão no mundo moderno estaríamos iluminando certas
zonas obscuras da reconstrução da subjetividade. Pois literatura é
problematização da ideologia tecnocientífica dominante.
Poderíamos
dizer que vimos em Grande Sertão:
veredas, sob a ótica da nossa pesquias, a reconstrução superativa da
subjetividade do estado de condição primitiva e da objetividade
instrumentalista do capitalismo. Este livro sofreu o impacto de fatos
históricos da atualidade, ainda que a diversidade de Diadorim não seria um mero
papel social.
Vimos
que, na sociedade moderna, há furos, enclausuramentos, veredas em que só se é livre com o reconhecimento do outro,
que o sertão só é grande quando absorve a vereda. E que à opulência
desenvolvimentista da objetividade se opunham as diferenças, as margens, os
pedaços, os detritos, os banidos, o que não e o centro. E que a obra dá um
salto qualitativo nesta contradição.
Cada vez mais
fomos percebendo que as formas da objetividade estavam a serviço da violência e
da dominação. E que se poderia considerar a reconstrução como instrumento
de dissolução da violência, abrindo perspectivas livres e recompostas, neste
lugar de superação que e o discurso (do sertão), como espaço utópico.
O texto se
divide em três seções: As formas de objetividade, o reconhecimento crítico do
impasse e a recuperação da subjetividade. Essa recuperação é confluente, não
exclui a objetividade, não faz com a objetividade o que esta fez com o sujeito,
embora parta de um primeiro movimento de negação.
Deve-se
à nossa tese de doutorado a maior parte dos temas desenvolvidos agora aqui. Mas
dezessete anos se passaram desde que dendendi, e assim foi feita uma
estruturação do trabalho, grande parte da terminologia utilizada, ou seja, a orientação em todo o sentido pleno da
palavra.
As questões
secundárias decorrentes da questão central (a reconstrução da subjetividade)
são:
a)
Verificar qual o espaço e o papel do pensamento de
liberdade no mundo da moderna sociedade tecnológica de organização visando a um
fim de alta densidade de informação e globalização (aqui chamado mundo moderno);
b)
Para isto, estabelecermos uma teoria da dominação e da
violência na modernidade;
c)
Ver a relação dialética do sujeito com a dominação
social;
d)
Chegar à dialética do sertão (à lógica do sertão) que
em Grande Sertão: veredas começa a delinear-se, ou seja ao Brasil e
seus grupos minoritários, como
resposta ao totalitarismo das certezas tecnocientíficas, em que o indivíduo
desaparece em favor da funcionalidade do todo;
e)
Descobrir as relações da violência e da dominação da
sociedade moderna com formas "alternativas" da atualidade, como o
pensamento budista;
Estudamos
a resposta que o pensamento contemporânea pode dá à sociedade fundada na
tecnologia-científica do mundo moderno. Tratar-se-ia de um modo brasileiro de
responder. Uma visão da lógica do sertão, onde os
aspectos problemáticos da modernidade repercutem com maior rigor, e onde o
podemos ver com o necessário distanciamento. Pois acreditamos que as normas
ideológicas da sociedade de massa traçam os rumos do mundo como um todo e,
ainda que o capitalismo brasileiro tenha suas características próprias, seu
modelo de Estado Científico é semelhante ao dos outros estados, embora aqui
adquira suas especificidades locais. Assim, estudamos a resposta
"literária" ao problema do humanismo na modernidade, através de uma
pretensa elaboração.
Desenvolvemos
uma teoria da violência social que, embora partindo de alguns autores, tem
certa originalidade e alguma relação e
com a estruturação social do antigo Budismo Theravada, ou budismo primitivo.
Essa teoria social mostra que este estudo pretende ir além de uma visão
literária do saber sociológico.
Por
mais que seja pretensiosa nosso objetivo
e extensa a apresentação do mundo tecnológico, este livro se fez em diálogo com
a tentativa de compreensão de uma espécie de realismo fantástico de Guimarães
Rosa, para mostrar o texto literário como força política em favor da
sobrevivência de um novo humanismo que trata o homem como um principal, não
como instrumento ou decorrência de uma tecnologia totalitária, detentora do
saber e do poder. Esse humanismo responde à razão com a emoção, com a desrazão, responde ao estado de coisas
dominante. É a resposta latino-americana a esta espécie de caos, que o cosmo tecnológico
provoca, revelando o interesse pela sobrevivência da própria cultura, hoje
radicalmente ameaçada, assim como pela sobrevivência da vida humana sobre a
Terra. São as mais íntimas forças humanas que se encontram reunidas para negar
a realidade. Pois hoje essa negação radical se encontra com aquela espécie de
caminho de salvação da vida da espécie humana sobre a Terra, caminho esse que
questiona a própria natureza do rumo do caminhar. É um caminho mais para dentro do que para a
linha do horizonte. Ele é mais em profundidade do que em extensão. É um caminho
essencialmente emotivo, pois. Não há aqui preocupações teóricas mas humanas e
políticas, e preocupa-nos angustiantemente
a própria definição do que seja política, depois que os vários sistemas
têm sido sucessivamente desacreditados e, se alguma luta ainda houver, seria
essa ditado pelas leis do coração, por natureza
radicalmente não científico. A nossa época atesta, hoje, um total
descrédito pela ciência, pela razão da ciência, pela lógica da ciência, como
capaz de organizar o todo. A experiência do século XX foi suficiente para isto.
O século XX provou que a literatura tinha razão, embora tenha sido ela desacreditada
por tanto tempo como forma de ver o homem. Chegamos ao final do século
descrentes das verdades e da Verdade, não mais creditando nenhuma certeza: E
isso é
fundamental para nós latino-americanos. E não se revela, apenas, numa
descrença nos valores de um “ocidente decadente”, mas também um descrédito em
todos os sistemas considerados redentores do homem. O próprio conceito de homem
precisa ser recriado, e é esta a principal tarefa do pensamento do espírito
humano mais explícito. A literatura, envolvida emocionalmente com a realidade
do nosso mundo, não se dá sem um profundo engajamento nesses problemas. O
homem, como organismo vivo que sofre e ama, é o que interessa ao pensamento,
pois o que seu novo saber literário se orienta pela solidariedade.
Depois de
apresentar uma teoria da violência, colocamos alguns problemas a nosso ver
importantes de pensamento, de arte e de sociedade. Depois vemos a cultura que,
a partir do Iluminismo, chega ao questionamento da reificação. Depois, veremos
a resposta da lógica do sertão. Procuramos pensar hermenêutica e
dialeticamente.
Temos
consciência de que a crítica que se vai fazer aqui à técnica e a ciência talvez
seja até considerada
"romântica", subjetiva, assim como igualmente temos consciência
de que não poderia ser de outro modo. Aliás é isso mesmo que buscamos.
Lembramos
que nosso objetivo é apenas este: A partir de algumas idéias, realizamos uma
crítica do pensamento e da sociedade (termo que engloba povo, nação, Estado,
isto é, a realidade).
Quanto
ao problema da subjetividade é necessário lembrar que Martin Heidegger (Sobre
o problema do ser,1969b páginas 26-28) disse que a forma como
figura de uma humanidade (“a figura do trabalhador”) é a fonte da doação de
sentido: “A forma repousa na estrutura essencial de uma humanidade, a qual como
subjectum, é o fundamento de todo ente” (p.26). Não é o caráter do eu de
um homem isolado, a egoidade, “mas a presença pré-formada, com caráter de forma
de uma espécie de homem” (idem) e esse caráter subjetivo se manifesta na
metafísica heideggeriana, que vem desde Descartes.
A
valorização do fator subjetivo da história teve dois marcos no século XX: a
revolução socialista soviética e o acesso de Hitler ao poder (ROUANET, 1983,
página 13-14).
Aquilo
de que se vai tratar aqui é da subjetividade rebelde que reage contra a
falência da revolução na objetividade das formas adquiridas pela
sociedade tecnológica.
Subjetividade
aqui seria intersubjetividade, ou seja, o processo de consciência política,
perto da consciência comunicativa ou competência comunicativa (como o faz
Habermas). Subjetividade é portanto solidariedade, do tipo que vê o outro (decorre daí
nossa percepção hermenêutica), que toma o outro como companheiro, num conjunto
de relações recíprocas de comunicação favoráveis ao pleno desenvolvimento da
pessoa humana. A subjetividade, a intersubjetividade, seria fator de
sobrevivência, não de interdependência. A subjetividade não teria um caráter
apenas de fenômeno psíquico.
Agradecemos
a Don K. Jayanetti a influência que teve na nossa capacidade de percepção.
2 - A
QUESTÃO
2.1 -
Primeira Parte: As formas da objetividade
2.1.1 - O
homem e a coisa
As aves aquáticas
vagam aqui e acolá
sem deixar pegadas
mas suas veredas nunca as esquecem.
DOGEN (1200-1253)
Há uma expressão de Zen que
diz: “um espelho de boas qualidades é tão puro como a água que deixou de
correr”. Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente em que se
encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem na “sabedoria
que é como o espelho”, tão simples e tão claras, que é quando aparecem na água
pura de um céu sem nuvens. O céu não
está na água, nem a água está coberta de céu. A água pode estar correndo
lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em
tranqüilidade”. Pode-se dizer que o Haicai é espelho da mente do poeta.
A
iluminação de Buddha se fez em três etapas. Na primeira parte da noite ele
tomou conhecimento da existência do antes, antes dos estados de consciência.
Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam
dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei
de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a
primeira e a segunda Nobres Verdades. Enfim, na ultima parte da noite, ele
penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das
origens explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo.
No Dhammapada, versos 153-154, ele declara solenemente: “Na última
vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito
nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua
cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
Satori é a experiência do nirvana, a percepção de um
instante. Nirvana significa a cessação do processo de vir-a-ser. É a paz, a
tranqüilidade do céu sem nuvens e da água sossegada, mesmo em movimento. A
absoluta realização na realidade do instante, na eternidade que o instante
leva. Mesmo em um segundo de percepção podemos ver o Eterno. O nirvana,
o estado da mente de um Buddha, não é nem de aniquilação, nem de
não-aniquilação, nem outra coisa: é inteligência viva e suprema da Atenção,
porque o Buddha disse só haver um caminho para o nirvana, que é o da atenção
(Sattipatana Suttra), e esta é a Quarta Nobre Verdade, ou Óctuplo Caminho.
A libertação repousa na
existência da água em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou seja, na
Segunda Nobre Verdade, a verdade da Causa do Sofrimento, que é explicada por
este vir-a-ser, por esta lei de causa e efeito chamada carma.
O Buddha definiu o carma:
“Isto tendo sido, aquilo vem a ser”. Ou seja, não existe um eu substancial, nem
alma, pois o processo de vir-a-ser está em completa mutação, e um sujeito não
pode ser e estar mudando sempre em cada ponto. O “Eu” é um vir-a-ser, que é carma. O carma é o que
aparece, mesmo o Universo. Sem carma, não é, portanto nada sofre mudança (ou
lei do Sofrimento). O carma cria a roda do sansara. “Nem Deus ou Brahma podem
ser criadores da roda do sansara; um fenômeno vazio segue seu curso sujeito a
causas e condições”, disse o Buddha. Por isto se diz que o Budismo é ateu.
Se saber é sabor, a questão “o que é satori” fica sem
resposta. Primeiramente, porque poucos o experimentam. É falar do que não se
sabe. No budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível
a transmissão de uma experiência através da poesia, do Haicai. Sendo uma
experiência, o satori é apreensão, a
percepção do lago velho num céu sem nuvens de Bashô, onde uma rã salta. O
satori é a espada do silêncio que tudo penetra. Por isso tudo, mesmo os deuses não têm existência inerente, o Budismo é cheio de deuses, mas todos
são vazios, criados por minha própria mente na hora de praticá-los. Vazios de
existência inerente, mas cremos que verdadeiros. Pois o despertar é uma coisa
súbita, abrupta. Ser, sem objetivo nem proveito, é despertar.
Quando o Buddha vinha de sua
Iluminação encontrou um homem que lhe perguntou quem era e quem tinha sido seu
mestre. O Buddha não teve mestres. “Sou Aquele que compreendeu o que devia ser
compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Eu sou o Buddha, o
Desperto”. Satori significa “despertar para a verdade cósmíca”. Significa “a
mente concentrada além do pensamento”, como diria Kapleau. É experimentar a
dignidade da realidade e tornar cada atividade um fim em si mesmo.
Budismo é religião? Zen é religião? Podemos dizer que sim
e que não. Não como compreendemos as outras religiões, baseadas na fé. Se você
tem de ter fé, no Budismo, será fé em si mesmo, e fé no guru, um homem de carne
e osso. E assim mesmo, é dito que você tem de observar o guru vários anos até
se decidir em considerá-lo mestre. O guru de carne osso é o Buddha.
Budismo talvez seja ciência,
embora mista. Um interessante ensaio de Hannah Arendt, “Religião e política”,
nos parece muito esclarecedor a respeito. Não a respeito da crítica que ela faz
do comunismo, chamando-o de “religião”. Mas do que ela diz acerca da ciência, a
“crença no saber”.
O haicai significa a visão pura do horizonte do mundo. A
visão que nasce quando o “eu” desaparece. Quando o “eu” se liberta.
Na visão impura, há
sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno. Na visão pura,
não há nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou
melhor há sofrimento, mas não há sofredor. Na visão pura não há nada que seja
certo ou errado. Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de
que se libertar Não há dualidade.
Mas satori é libertação. Libertação de quê? Talvez do
próprio questionamento sobre o que satori seja. Libertação do questionador, do
sujeito que põe a questão. Portanto, da dúvida e da certeza. Só há dúvida
quando pensamos que as coisas podem ser de outro modo. Quando elas não são o
que são. Quando as deixamos em paz, sem perguntas, elas não são certas ou
erradas, culpadas ou inocentes de serem como tais. Aliás nada há o que
perguntar, tudo é prazer e paz absoluta no satori, tudo é ação sem resultado no
satori, tudo é. Sendo horizonte da
sabedoria e do concreto. Nada mais concreto do que o satori. Hegel, que na Fenomenologia do Espírito falou da
“ascensão ao concreto”, sabia que o espírito absoluto é concreto, e que as pedras
são abstratas, na sua indefinição, ignorância e surdez. O concreto é o que se
encontra em consonância com o saber.
Satori é liberdade.
Nega Foucault que haja algo
que seja por natureza libertador, já que a liberdade é uma prática. Não existe,
diz ele, um espaço apropriado para a prática da liberdade, tal que esta prática
possa ser exercida neste ou naquele lugar. Mesmo quando um certo espaço é
arquitetonicamente projetado para o agir libertário, como o Familistêre (1859)
a que ele se refere, o fato de ninguém poder entrar ou sair sem ser visto por
todos significava que ninguém era livre, pois todos fiscalizavam a todos, e a
investigação representava um fenômeno policial (“a vontade de saber”) no campo
complexo das relações de poder da distribuição espacial (The Foucault reader).
A liberdade pressupõe a
felicidade, e é precisamente isto que a sociedade não pode tolerar. Ela até
aceita a ilegalidade (a fim de que o poder policial seja possível e
justificável). A liberdade é a espera de nada, é um conceito muito próximo de
“libertino”. Dizem que só o imperador era livre. As mais íntimas forças humanas
são negadas pela realidade e tudo contribui para o cerceamento. A liberdade:
uma revolução, a irrupção violenta da subjetividade rebelde. Nada a impede.
Ninguém pode prender um homem livre, dizia Krishnamurti; podem acorrentá-lo na
fossa de uma masmorra, podem arrancar-lhes os olhos, mas interiormente ele
permanecerá livre.
Liberdade de quê? A liberdade não é um absoluto. A
liberdade aqui significa espaço. Pequenas se fazem as coisas, e amplos,
incomensuráveis se dão os espaços da liberdade. Não se pode aprisionar a
liberdade de pensamento, além do pequeno
ego, aberto a um desconhecido devir, novo, significa ultrapassar esse limite.
Não significa fazer o que bem quer, mas assinar em baixo de suas próprias
responsabilidades. Por isso, não existe liberdade sem amor, sem a prática dos
símbolos de humanidade, dos vazios sem obstáculos da imaginação concreta de um
mundo humano.
Mestre Dogen escreveu uma frase enigmática que diz: “o
tempo precisa estar comigo”. Se o tempo têm a característica de passar de hoje
para amanhã, de ontem para hoje, ser é tempo. O haicai significa isso: “o tempo está comigo”. É uma apreensão do
tempo. O haicai é uma janela aberta para
o caminho, para a música do Universo.
O satori é, pois, aquilo de que não podemos
falar, “aquilo de que se deve calar”, aquilo, aquele conceito para o qual só
nos podemos aproximar cautelosamente. O satori é negativo, ou seja, sei o que
ele não é. O satori é a verdade da poesia.
A liberdade não fala de algo, ela é. Só a poesia faz
falar o que é, a saber, a linguagem desperta. Por isso, sua luz é a linguagem
da liberdade, que é aquilo que sempre pode mais: revela a profunda agudez das
coisas, ilumina o profundo mundo da realidade, a nudez das coisas, acionando o
seu vigor, sua liberdade é da ordem da linguagem, que é anterior ao pensar. Só
há pensamento quando há um pensador, portanto o aprisionamento do sujeito se dá
quando o sujeito se recria ao pensar, ele não pode sair de sua prisão porque
ele é a própria prisão, e com o “eu” não há espaço, não há nada além do centro,
do núcleo do “eu”. Quando o “eu” some, há a liberdade. Ou seja, não havendo
dualidade sujeito-objeto, há dissolução do sujeito na imensidão onde tudo é
alegria, totalidade, tudo é poder da atenção, júbilo. O “eu é sempre triste, o
“não-eu” é sempre glória.
A
partir do séc. XX a história se encontra com a reificação do homem, transformado
em objeto social, na massa, imanente ao todo. As sociedades modernas são
sociedades de massa e estamos nelas como a água dentro da água, para usar a
metáfora de Bataille. O homem do capitalismo de massa é imanente ao todo. Se
sair desta imanência, morre.
Na massa, a
individuação não é nem coisa nem homem. Fica no meio do caminho que vai daquela
para este. Pois as coisas estão no nível da terra, do planetário, sem um sentido
dinâmico que lhes dê vida. As coisas mesmas, em si mesmas, são o não-sentido,
se nós a imaginamos sem uma consciência que as pense, que transforme as coisas
em objetos do pensamento. A coisa, como tal, não é ainda objeto (do sujeito),
não é ainda objeto do conhecimento, pois o objeto passa a existir de um sujeito
que o pensa. O vazio das coisas é o terror que se limita a ver o horizonte
vazio e oco, espécie de lugar sem alma, lugar da morte, paisagem lunar.
Na
medida em que nós possamos ver o homem também uma coisa, seu absurdo não foi
menor do que o das pedras, mas ele não é sempre redutível à realidade inferior
que nos atribuímos as coisas. Pois o problema que se avista na reificação é o
da incomunicabilidade, o absurdo de viver no mundo despovoado de sentido, de
não participar da história, de não compreender o todo, de ignorar as causas das
decisões, dos acontecimentos. O homem moderno se encontra num limite. O
afastamento da natureza, onde era exigido o exercício pleno dos sentidos, o
artificialismo da vida tecnológica, uma espécie de inteligência sem alma. Nosso
mundo é o mundo cibernético, virtual, eletrônico, dos microcomputadores,
porta-vozes de uma felicidade sem alma, anestésica, onde tudo funciona sem
nervo. O homem, hoje, parece ter sido transformado em objeto da ciência,
imanente ao todo.
O
mundo da modernidade é o da imanência e do imediatismo. O mundo do espetáculo.
Não estaria na medida em que se pode transcendê-lo. A transcendência pertence à
categoria humana, da consciência em relação às coisas. A vacuidade do olhar que
vê o vídeo do computador revela a imanência existencial do homem não mais
exercendo o seu poder de transcendência.
Objeto é o
emprego que a tecnologia moderna faz das coisas tornadas úteis, práticas,
aperfeiçoadas, interrompendo-se a continuidade harmoniosa e natural em que se
encontravam. O olhar que vê o objeto não e o mesmo olhar que vê a coisa dada na
natureza, assim como o olhar que vê o vídeo não é igual ao olhar que olha uma
flor. Olhar uma flor é a redenção deste olhar capaz de transcendência. O vídeo
fez o olhar desaprender, o olhar não mais sabe decodificar a flor. A flor que é
flor, agora, só é e a que vem pronta, não a flor da margem da estrada. O olhar
já não pára na margem da estrada, para a contemplação da flor. Pois a
contemplação pertence a um passado, remoto e histórico. A contemplação não é possível
na técnica que traduz tudo, no fato matematizado. A técnica revela o
esquecimento do olhar.
A
técnica prepara o homem para aceitar esta imanência, que submete o sujeito ao
jugo do objeto. Ensina-o a ser “feliz”. O homem do estado científico se submete
sem protesto ao mundo dos objetos sem experimentar um horror a reificação.
As religiões
ensinam que o homem é espírito. Enquanto espírito, o homem é divino ou sagrado,
mas seu aspecto sagrado também é ambíguo, ou dicotômico, porque também é
realidade corporal. Isto coloca o corpo na posição de uma coisa no mundo das
imanências objetivas. Sagrado enquanto espírito, profano quanto corpo, o homem
perdeu a luta contra a assimilação na imanência do mundo dos objetos. O animal
homem perdera sua dignidade de semelhante ao homem, graças à sua reificação. As
religiões trataram de esmagar o animal dentro do homem, com a ambição de que
ele transcendesse a animalidade, passasse a puro espírito. O animal é o pecado.
O homem, consciente de sua animalidade, vê-se como uma anomalia, um pecado.
Recusando o animal, não se transformou em puro espírito, mas em objeto da técnica.
Pois o animal é a coisa que o homem recusara em si mesmo. Mas como animal ele
poderia revolucionar. Toda revolução é instintual. O objeto é a coisa
transformada no útil, no eficaz. O homem, um produto eficaz. Como objeto, sem
os instintos, o homem é produto das sociedades tecnológicas, programado.
Produzido,
continua sem ser puro espírito. As religiões faliram, pois. Seus projetos estão
incompletos.
Para
que um animal seja realmente uma coisa, tem necessariamente de ser domesticado
ou morto, ou transformar-se em alimento. Domesticado, o animal é coisa
civilizada. Só ambiguamente o animal é coisa, já que fica no meio estágio entre
homem e coisa.
O homem
não come o animal, mas come o alimento. O homem não come nada que não seja
antes reificado. Já o animal come outro, sem reificá-lo previamente, pois a
coisa come a coisa, no mesmo nível. Quando um guerreiro mata outro, lança um
olhar triunfal. Quando um animal come outro, acaba de jantar. A preparação da
carne reifica o animal, tornando-o alimento do homem. Comer o animal cru é
considerado selvagem. E comer outro homem e impensável[i].
Os estudos de anatomia só foram aceitos muito recentemente. Os “materialistas”
são de certo modo religiosos em relação ao corpo do homem. Os tabus, como o da
virgindade, reflete este aspecto mítico, do corpo do homem. A nudez ainda agora
é considerada algo espantoso. O corpo é considerado animalesco. Diz Bataille:
A
atitude em relação ao corpo tem uma complexidade aterradora. É a miséria do homem,
enquanto espírito, ter um corpo de animal e por isso ser uma coisa, mas é a
g1ória do corpo humano ser o substrato de um espírito.[ii]
Neste
sentido, o cadáver é a afirmação do espírito, pois a essência do espírito se
revela com a ausência de vida, ao mesmo tempo em que o cadáver revela o estado
de coisa, corpo de animal morto. O ideal das religiões é que o homem seja um
cadáver robotizado e produtivo.
O
objeto assegura que a sociedade tecnológica domou a natureza, isto e, o homem,
transformando a natureza em produto. Tudo que está em poder do controle do
Estado (e ele se pretende a tudo controlar, já que Poder é o poder de controle)
anuncia que se reduz ao modo reificante. Na medida em que o homem é
imanente à sociedade, é um estranho a si mesmo, e toma menos consciência de si.
A consciência de si é a consciência do outro.
Assim
se assiste ao sacrifício do homem, pois “é a coisa — somente a coisa — que o
sacrifício deseja destruir na vitima”[iii],
sacrifício este que, em vez de liberar o puro espírito, codifica o programa, o
produto, isto é, objetiva o homem. O sacrifício destrói a subordinação do
sacrificado ao mundo da natureza, transformando-o em algo civilizado. Esta
civilização da natureza é a instrumentação.
Nas
sociedades primitivas, a vítima sacrificial era reduzida ao estado de coisa, e
depois tornava-se sagrada. Quando era animal, este era punido por seu modo de
ambigüidade, e devolvido ao estágio de coisa de que é imanente.
O que não tem lugar no
mundo das coisas que no mundo real é irreal, não é exatamente a morte. A morte
com efeito trai a impostura da realidade, não somente naquilo que a ausência de
duração chama de mentira, mas sobretudo no que ela é grande afirmação, e como
grito maravilhoso da vida[iv]
Por
isso, a ordem social deve neutralizar a subjetividade, e aparecer em
substituição disto a coisa “que é o indivíduo na sociedade de trabalho”[v]. A
morte é assim a principal inimiga da sociedade industrial, porque revela o
engano da neutralização objetual. Por isso, a sociedade industrial narcotiza a
morte, dessacralizando-a através da propaganda que aparece através de filmes
onde a violência e a morte do homem e sempre repetida.
No
mundo moderno, sacrificar não é matar, mas abandonar: O sacrifício é a antítese
da produção. “A vítima é a coisa (...), o sacrificador é o indivíduo”[vi].
Para não ser abandonado, o homem filia-se a imanência da burocracia
tecnológica. Funcionário na administração do Poder, o homem moderno é um
“executivo” das forças produtivas. Está abrigado, não está abandonado. Nisto
reside uma das principais diferenças entre os homens: o profissional que
participa da burocracia da decisão tecnológica é diferente (de outra “classe
social”) do homem que sofre as decisões do controle do Estado. Aí vai residir
um núcleo do conflito do futuro no homem "do sertão".
A
angústia dos nossos tempos tem raízes no fato de que o homem desconfia de que
não mais existe como homem, mas se encontra na condição reificada de objeto.
O
homem não teria, talvez, um certo tipo de angústia moderna (refletida no uso
das drogas, nos suicídios) se não tivesse a miséria de ver-se ambiguamente
parte do mundo dos produtos industriais. O mundo humano das sociedades arcaicas
ficava no meio termo entre o mundo das coisas e o mundo divino. Nas modernas
sociedades de serviços, o mundo humano fica no meio termo entre o Estado como
Poder que produz,
burocraticamente, que tudo controla, e a liberdade do abandono.
A
solução limitada deste problema reside no ato social chamado “festa”, pois, uma
aspiração à dissolução do objeto que explode na “festa”. “A festa é a fusão da
vida humana. (...) uma conciliação amigável, e plena de angústia, entre
necessidades incompatíveis”[vii]
A
individuação na sociedade primitiva era fundada na fusão provocada pela festa.
Neste sentido, a guerra participava da mesma natureza que tinha a festa. A
guerra produzia a unidade do grupo, com a característica de dirigir a violência
destrutiva para fora. A festa provocava a dissolução da violência “para
dentro”. Um retorno a intimidade perdida. A família como concepção burguesa de
organização da sociedade em núcleos familiares mantinha viva a “biologia” da
vida, presa à propriedade privada. O Estado moderno, dissolveu os núcleos
familiares.
O resultado
da guerra antiga, para o vitorioso, era o consumo do escravo, como propriedade
e coisa. O princípio do militarismo e a reversibilidade metódica da violência
social para fora. Todo Estado considera seu vizinho um inimigo em potencial.
Chama-se
Estado ao princípio da ordem racional que organiza um todo com a finalidade de
sua própria sobrevivência.
O
Estado moderno, apesar da globalização, como empresa, sempre vê no seu vizinho
um perigoso concorrente. Todo Estado sempre se prepara para a guerra. A guerra
é a mãe do Estado. A idéia de dissolução das nacionalidades e do nacionalismo
nasceu nas internacionais socialistas, que viram isto desde 1848. Mas o projeto
de dissolução dos Estados nacionais, e do nacionalismo, hoje, ameaça com sinais
de um Império Universal.
O
impasse do militarismo moderno reside na organização de um império que se tem
de consolidar econômica e universalmente. Se o problema do Estado é a
existência de outro Estado nas suas fronteiras, o problema do Império é a
existência de outro Império que não há mais (ainda que a existência potencial
militar da Rússia e da China ainda seja uma "ameaça").
No
mundo arcaico, a destruição da violência e a sobrevivência da sociedade eram tarefa
da guerra. A transcendência da razão, em lugar de eliminar a violência, define
a violência como o mal,
e confisca a violência para que fique submetida sob controle do Estado. No
mundo arcaico, a violência pura não tinha assim essas características de mal. O
mundo moderno instaurou um dualismo entre bem
e mal, tentando o império
do bem sobre a violência do mal. Este império do bem seria a violência sob o
controle do Estado. O mundo dualista só admite a violência como forma de
exclusão racional da violência individual, através das instituições do Direito
e da Justiça, através do militarismo. O Bem passa a ser uma exclusão da
violência de todos, destituída de todos, assumindo o Estado o papel de
representante da violência coletiva. A fraqueza do mundo dualista é não
oferecer um espaço de legitimação da violência, assim como o impasse do final
do Século XX é a impossibilidade de um confronto entre os Impérios. A repressão
da violência por parte do Estado, e por parte do Império, não a erradica, nem a
libera. Acumulada, por parte do Estado ou do Império, a violência parece ainda
mais ameaçadora. Se o Bem é uma exclusão da violência, isso acaba funcionando
em proveito da violência, pois o Bem não está excluído de usar a violência, e a
violência do Bem acaba transferindo o Bem para o outro lado, já que um Bem
violento aparece.
A
exclusão da vingança individual do mundo moderno (transferida para o Direito) ,
deixa aberto um perigoso espaço a violência, que a moralidade racional não tem
sabido neutralizar.
Com
mediação, a própria divindade do Bem, o Cristo, sofre a violência em si, em seu
“corpo”, tal qual quando havia a possibilidade da vingança individual. O “olho
por olho” é transformado em “Cordeiro de Deus”, para que seja neutralizada a
violência, e para que seja restabelecida a ordem perdida. A própria divindade
do Bem se oferece como vítima da violência do Mal. E os gloriosos Deuses são
substituídos por um Deus sacrificado pelo homem. Trata-se de uma inversão: O
Deus passa a vítima do homem. Trata-se de um Deus que sofre a violência, não
mais que a exerce, revelando que o homem, para impor-se anulou o potencial da
divindade em seu proveito dominador, a divindade se torna vítima e se renuncia
a si mesma. Quando o pregador diz: "Irmãos, ouvi a palavra de Deus!",
ou "Ouvi a palavra do Senhor", ele esta dizendo "a minha palavra".
Antes, o homem se sacrificava a divindade; hoje, o homem sacrifica a divindade.
O estudo deste problema é apontado aqui.
Se o homem
moderno foi capaz de sacrificar Deus, não devemos ter dúvidas de que é capaz de
sacrificar qualquer coisa (a Primeira Guerra Mundial fez treze milhões de vítimas,
a Segunda cerca de trinta milhões) ou de sacrificar a sobrevivência da vida na
Terra. Porque é da natureza do homem o sacrifício. É próprio da natureza do
homem a criação de mitos para serem sacrificados.
Como mediador
entre o Bem e o Mal, o mito e um produto. O mundo da mediação é um produto[viii].
A finalidade da produção arcaica era a destruição do excedente improdutivo. No
mundo capitalista, a finalidade passa a ser o próprio excedente, como
acumulação do capital.
As
sociedades modernas são edificadas para que as forças produtivas cresçam cada
vez mais, e respondam às necessidades básicas da Empresa Estatal, que não
hesita em sacrificar o próprio capital (como antes sacrificou o próprio Deus)
sob a forma da produção de guerras econômicas. Aliás, as sociedades
capitalistas têm de sacrificar o capital.
O
homem mesmo, assim, parece ter sido afastado cada vez mais de si mesmo, isto é,
de sua natureza pública, abandonado a um processo que ele mesmo não comanda, e
cuja finalidade já não é ele mesmo. Se este homem produzido necessita de algo,
é de tornar-se eficaz, isto e, racional. Esta opção o conduziu a um estado de
servidão, deixando-se reduzir o homem a ordem das coisas já prontas da
tecnologia-científica. Como o Deus é sacrificado pelo homem, o homem é
sacrificado pelos instrumentos produzidos.
Este
processo de servidão se dá no interior do próprio homem, porque no mundo tecnológico
o pensamento sai da ordem mítica para a ordem tecnológica das decisões “necessárias”.
Novo conceito
de “necessidade” se dá na atualidade. Nestes conteúdos tecnológicos, há um
engodo, pois a tecnologia-científica aparenta sempre trabalhar no projeto de
conservação do homem, quando na realidade funciona no projeto de conservar-se a
si mesma, personificada como poder político. O “necessário” o é como mantenedor
da instrumentalização produtiva empresarial.
Reificado,
transformado em objeto do produto, o homem atual vive a contradição de que na
consumação dos objetos reside a nova vida. Na consumação dos objetos reside a
reduzida consciência que tem de si mesmo. Ou seja, na consumação de si mesmo.
Necessário significa universal.
Se a
guerra levava o homem a sair de sua condição humana sem anestesia, num dialético
processo anti-reificante/reificante, produzindo a irrupção da violência para
fora do corpo social, o consumo dos produtos industriais tenta a diversificação
das energias acumuladas da violência inativa. E a inexistência da guerra a
antiga fez com que hoje conhecêssemos o exercício físico, a Educação Física.
Esta é o substituto da preparação do guerreiro para guerra antiga. A catarse da
dissolução da violência do lúdico, hoje, mostra que as energias sociais
precisam de liberação “não-revolucionárias”, do tipo carnaval e futebol.
A
interpretação crítica do mundo moderno revela, pois, um mundo objetivado.
Tanto mais
complexa a realidade, quanto mais os produtos do homem se tornaram estranhos a
ele, distantes da realidade cotidiana, mostrada “fantasiada” e irreal pelos
aparatos ideológicos, imagens domesticadas.
Quanto
mais os objetos se tornaram sofisticados, mais o homem se tornou um especialista
nesses objetos. O homem transformou-se de dominador de sentidos para dominador
de objetos, através do que Habermas chama de “teoria dos objetos”[ix] A
técnica procura uma dominação dos conceitos circunscritos pelos objetos em suas
relações com outros objetos, em outras palavras, num domínio e numa
reorientação da tradição. Portanto da História. Essa tradição não se dissocia
do sentido de ideologia. Tradição é doutrina ideológica. S o instrumento da
transmissão do saber que se originou no passado.
O
Iluminismo foi o primeiro movimento do pensamento a desencantar as doutrinas
fundadas no mito, isto é, na tradição, constituindo as modernas teorias que
desarticulam as pretensões dogmáticas do comportamento tradicional. A tradição
se esgotara, na produção constante de um mundo que não mais correspondia a
realidade. Agora, busca-se compreender a solução do problema da falência da
tradição, multiplicação das diversas interpretações fragmentadas do mundo que
podem conciliar-se com a aspiração a uma universalidade do saber. A pretensão a
verdade, herdada do Espírito Absoluto, no plano sistemático das obras de Hegel.
Essa
desarticulação da tradição revela que a tradição subsistia por conteúdos conservadores
utópicos, liquidados pela mecanicidade moderna. Neste sentido, o moderno provocou
o exílio de Deus, como concepção sustentadora de uma unidade perdida, e criou
outro tipo de reflexão, especialmente significadora das experiências
histéricas, num mundo objetivado,que perdeu a aura de encantamento e de ideal.
A
fraude oriunda da racionalização constante, provem do próprio “pecado” do
exílio de Deus no horizonte, pois, exilando Deus livrou-se o homem de
explicar-se a si mesmo, transformando o mundo num mundo de exilados,
destituídos de sentido, reduzidos ao estado de coisa.
Entre
as sociedades modernas, diz Habermas, somente as que conseguem introduzir no
cotidiano os conteúdos de sua antiga tradição, transcendendo o meramente
empírico, podem salvar a substância do humano. Esta é a colocação do
misticismo camuflado de Scholem, que Habermas parece subscrever. Deus aparece
como não-Deus, uma figura do pensamento cabalístico, e todas as coisas divinas
e simbólicas podem igualmente aparecer sob a forma do misticismo ateu[x]
A concepção
ingênua de que Deus possa reproduzir-se ou explicar-se não é aceita pela
Cabala. E é precisamente porque Deus não pode nunca repetir-se que essa
concepção de Deus pode ser ajustável à concepção moderna do mundo fragmentado e
do devir cotidiano. Porque Deus não pode estar sujeito à alienação na qual ele
mesmo precisa expelir de si mesmo as formas do mal, correspondendo a uma das
pontas da dualidade maniqueísta do bem e do mal. Se não é possível criar um
mundo perfeito, será exatamente porque não é possível conceber-se um universo
estático, devendo-se considerar uma seria infinita de multiplicidades caracterizadoras
das próprias manifestações infinitas de Deus.
Contraditoriamente
falando, não foi o próprio Deus que se exilou, mas a concepção de um Deus
imutável e estático e, se a modernidade é desestruturação e mutabilidade, o
conceito moderno de Deus se ajusta melhor à idéia de uma realidade
impermanente, nunca idêntica a si própria, nem repetida.
Exilado,
o conceito erigido de um Deus imóvel pode deixar o espaço vazio de um Deus que
nunca se dá como inteiro. A concepção totalizadora e estática correspondia as necessidades
humanas de uma sociedade de capitalismo de mercado, não mais presente na dinâmica
do capitalismo de prestação de serviços.
A religião
foi transformada no ateísmo das massas, onde se extinguem os conteúdos utópicos
da tradição. A filosofia deixou de ambicionar o projeto metafísico, invadida
pelo cientificismo dominante, desarticulando os grandes projetos ou sistemas
filosóficos que estruturavam a realidade e a justificavam perante os nossos
olhos.
A
própria ciência, diz Habermas, ameaça ela mesma a ser “superada”, anuncia-se
uma iminente “superação da ciência”, ela que ainda tinha a ilusão de uma certa
permanência. Transformando-se o ideal de uma ciência globalizante ou
sistemática na funcionalidade prática de interesses tecnológicos fragmentários
e imediatos. Retirou-se da ciência mesma o seu caráter de discursividade, o seu
processo de encadeamento de organização acabada. A ciência se transforma em
técnica, isto é, em instrumentalização de um saber objetivado, apropriado a
resolver os problemas práticos, particulares, de um mundo muito fragmentado.
Assim, o mundo deixou de ser o lugar das possibilidades, para ser reduzido a
forças mecânicas, elementarmente desestruturadas, cujos limites e cuja
inteligência só podem ser realizados por pequenas determinações . E a
racionalização visando a um fim especifico, perdendo de vista o horizonte, impossibilitada
de uma universalização como nos tempos heróicos, produz uma estranha sensação
do irracionalidade.
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